910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

“We Can Do Great Things”, de Glennon Doyle: esta mulher é um novo messias

Este artigo tem mais de 3 anos

Autora de best-sellers, com milhão e meio de seguidores no Instagram, estreou há duas semanas um podcast-fenómeno que quer ajudar quem a ouve a superar dificuldades. Mas quem é Glennon Doyle?

Together Live - Houston
i

Doyle, com 45 anos, rejeita rótulos como “guru” e termos como “seguidores”, porque não quer que vão atrás dela. O que lhe interessa é ajudar as pessoas a sentirem-se “mais ativadas nas suas vidas”

Getty Images for Together Live

Doyle, com 45 anos, rejeita rótulos como “guru” e termos como “seguidores”, porque não quer que vão atrás dela. O que lhe interessa é ajudar as pessoas a sentirem-se “mais ativadas nas suas vidas”

Getty Images for Together Live

Sabe aquela anedota sobre o Zé de Afife e o Papa? “Aquele ali é o Zé, toda a gente o conhece, mas quem é aquele sujeito vestido de branco ao lado dele?” Na Internet, não é uma piada. Basta passear uns minutos pelo Instagram: Cristiano Ronaldo, Justin Bieber, Glennon Doyle. Sim, Glennon Doyle. Mais de milhão e meio de seguidores, dois milhões de exemplares do último livro vendidos e um podcast que ainda antes de ter sido estreado, há duas semanas, saltou para o primeiro lugar do top da Apple. Nunca ouviu falar? Percebo.

É difícil de acreditar que isto ainda aconteça. Num mundo ultraglobalizado e sempre ligado, um fenómeno passar-nos assim ao lado. A voltar a fazer dos jornalistas correspondentes de lugares estrangeiros. “Em todas as épocas houve fenómenos com carácter escandaloso. Nesta, um desses fenómenos é o da juventude”, lia-se na revista Flama em 1961 sobre o rock’n’roll e o francês Johnny Hallyday. Passados 60 anos, sobre este outro fenómeno e caso esteja a perguntar-se (eu perguntei-me): é uma mulher, é americana e é, não líder de uma igreja, mas fundadora de uma “filosofia de vida”. O mantra mais repetido serve de título ao podcast: “We Can Do Hard Things”, “Conseguimos fazer coisas difíceis”.

Entre as coisas difíceis que Glennon Doyle, 45 anos, conseguiu fazer encontram-se lidar com a bulimia e o alcoolismo numa primeira fase da vida, as traições do marido numa segunda, e assumir uma relação com uma mulher, com quem se casou em 2017, a futebolista bicampeã olímpica Abby Wambach, numa terceira. Todos temas que deram direito a livros de memórias, três, como se ao contrário de qualquer um de nós, ela tivesse direito não a uma, mas a várias vidas. O título do último é Indomável (Cultura Editora), promovido como uma “galvanizante chamada para a vida”.

A capa da edição portuguesa de "Indomável", de Glennon Doyle, publicada pela Cultura Editora

Doyle rejeita rótulos como “guru” e termos como “seguidores”, porque não quer que vão atrás dela. O que lhe interessa é ajudar as pessoas a sentirem-se “mais ativadas nas suas vidas”, explicou à revista The New Yorker. O método é o da honestidade radical, connosco próprios e com os outros, e o objetivo final trazer cá para fora o nosso verdadeiro eu. Sem capas de super-heróis. Ou como dizia em 2013, numa conferência TEDx, “Clark Kent é muito mais interessante que o Super-Homem”. O título da palestra é “Lições do Hospital Psiquiátrico”. Ela passou por lá. Tempos longínquos, mas marcantes, numa altura em que já era conhecida como autora de um best-seller (Carry On, não publicado em Portugal), baseado num blogue (Momastery), onde se reinventara como mãe cristã e a tempo inteiro. A meio da conversa, cita a pintora Georgia O’Keeffe. Parafraseando: “O sucesso é irrelevante. O que importa é tornar o teu desconhecido conhecido.” No original, “Whether you succeed or not is irrelevant — there is no such thing. Making your unknown known is the important thing (…)”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[a palestra de Glennon Doyle numa conferência TEDx:]

O mundo está cheio de livros de auto-ajuda. Agora que o áudio se assume cada vez mais como um mercado alternativo, chegam os podcasts e os audiolivros. E se a descrição sumária dos parágrafos acima parece apontar nesse sentido, o discurso de Doyle vai um pouco além. A meio caminho entre as fórmulas milagrosas e o garimpo demorado da psicoterapia ou da psicanálise. Ela tem uma frase curiosa. Que a religião é para as pessoas que têm medo de ir para o Inferno e que a espiritualidade é para quem por lá já passou. Mais do que um conceito incontestável é um exemplo acabado do que tem para oferecer: a tradução de sentimentos complexos em frases simples, a desmistificação das sombras, a enunciação do não-dito. A defesa de que, acima de tudo, é preciso pôr cá para fora. Depois, o storytelling. Mais do que histórias, parábolas. O evangelho segundo Glennon Doyle. Mas com um fundo de vulnerabilidade, que é a sua. E a tal honestidade radical. Depois do segundo best-seller, Guerreira do Amor (Nascente), chegou a pensar tornar-se “ministra” e foi aceite num seminário de Chicago. Altura em que uma influencer particular, uma professora do 8.º ano, lhe disse, “Tu já tens uma igreja. Só não tem muros.”

"Guerreira do Amor" (publicado em Portugal pela Nascente) tornou-se no segundo best-seller de Glennon Doyle

Com o podcast “We Can Do Hard Things”, Doyle afirma querer regressar às origens deste seu percurso de, à falta de melhor palavra, “influencer”. Ou pelo menos, a tempos mais tranquilos. E é chegada a altura de juntar a última peça ao puzzle. Durante a pandemia, tal como tantos outros casais, tanto ela como a mulher passaram a estar muito mais tempo juntas. Vai daí começaram, de forma aparentemente espontânea, a partilhar momentos do quotidiano. Um vídeo sobre a melhor forma de pôr a loiça na máquina tornou-se viral. Duas dúvidas:

  1. Que casal nunca discutiu sobre a melhor forma de pôr a loiça na máquina?
  2. Como é que de repente isso se torna um conteúdo irresistível?

Por coincidência, o período sobrepôs-se ao do lançamento de “Indomável”, que foi também um dos audiolivros mais ouvidos de 2020. Neste período, os seguidores de Doyle no Instagram duplicaram. Ao todo, o casal chega dois milhões e meio de pessoas, sem contar com partilhas de terceiros.

O formato do podcast é simples. Doyle fala, junta-se a ela a irmã, parceira inseparável (“eu penso em cores, a minha irmã pensa em folhas de excel”) e no final respondem a perguntas de ouvintes pré-gravadas. Em pleno pandemónio pandémico, o tema do primeiro episódio é a ansiedade. Poderia ser outra coisa? A mulher que consegue coisas difíceis sofre, claro, de ansiedade. E também de depressão. “É como se estivesse sempre um pouco triste, mas de uma forma muito intensa”, arranca. É para rir. Também aqui há humor. “’Triste’ e ‘assustada’ é onde vivo.” Ao longo de uma hora conta histórias suas, de amigos, de família. Fala de drogas, de dependência, descreve um ataque de pânico. Fala dos filhos e da gestão doméstica. Conta como se sentiu estranhamente calma no início da pandemia. E pouco depois percebeu que todos os amigos ansiosos e deprimidos comungavam da sensação. “Sempre vivemos assim”, conclui. Como se tivessem passado a vida toda a treinar-se para isto.

O tom é intenso. A voz um pouco irritante. E a duração podia ser encurtada em talvez um quarto. Ainda assim, damos por nós e ouvimos tudo. Discurso empático, ideias surpreendentes, frases pensadas e polidas ao longo de anos a falar em eventos literários e não só. “Para mim, ansiedade é não estar no momento. Por isso faço tudo o que consigo para voltar ‘ao momento’. Ir do ‘e se’ (‘what if’) para o ‘o que é’ (‘what is’).” Apetece agradecer.

Entretanto, já há mais dois episódios disponíveis. O primeiro sobre limites (“boundaries”), como estabelecê-los e, mais importante, lidar com as consequências. O mote é o momento em que se apaixonou por uma mulher e o difícil que foi contar à mãe. De novo, relata as dúvidas, os erros, as angústias. E a forma como conseguir resolver. “[Percebi finalmente que] Não me cabia a mim fazer as pessoas sentirem-se radiantes com a minha decisão.” Ou, “A única forma de se convencer alguém de que se está bem não é argumentar sobre isso é mostrar que se está bem.” O terceiro toca um tema também ele difícil e pessoal, a infidelidade. Durante o casamento com o modelo Craig Melton, Doyle percebeu que tinha sido traída dezenas de vezes. A irmã tem uma história ainda mais dolorosa. Da traição, veio um filho, de que ficou a saber por um acaso, ainda estava casada. O episódio arrasta-se. Torna-se mais insistente a ideia de que devia ser mais curto. Mas o público pede mais. E há-de ter, todas as terças-feiras.

Together Live - Houston

Getty Images for Together Live

Há no ecossistema das redes sociais uma distinção difícil, se não impossível, de se fazer. O que é autêntico e o que é encenado. O que é feito para vender e o que é intrínseca e indissociavelmente pessoal. Mas talvez esta seja uma preocupação de uma sociedade pré-Internet. Do Zé de Afife, ou do Moishe de Nova Iorque, porque parece que a piada do Papa será judaica. Como não, de resto? Porque sempre houve encenação. Porque cada um de nós é muitas coisas. E porque sempre procurámos luzes para nos alumiar o caminho. Fossem filósofos, estrelas rock ou messias. E numa altura de tanta incerteza, ainda mais.

À distância, há mais um pormenor insólito em toda esta epopeia, que é o momento em que a mulher que se define como uma “oradora motivacional clinicamente deprimida” se torna também política. Ou estende a influência dos seus valores, que vão da honestidade e à vulnerabilidade, passando pelo amor, à política. É a América podemos argumentar. Ou talvez não.

Durante a corrida contra Donald Trump, a equipa de Joe Biden pediu-lhe ajuda. Houve reuniões estratégicas. Apelos ao voto. O seu público de eleição – mulheres brancas, suburbanas, muitas delas conservadoras, que tinham começado a segui-la enquanto “mãe cristã” e acabaram por ficar pelo testemunho de força e resiliência – era fundamental. A dada altura é Elisabeth Warren, senadora democrata que chegou a estar na corrida para a Casa Branca, que diz publicamente, “A sua voz, num tempo de completa insanidade, é uma voz que nos lembra que todos temos um centro, que todos temos um coração.” Por fim, no momento de alívio global em que o mundo sabe que Biden ganhou, que Trump não será mais presidente dos EUA, o diretor de campanha escreve no Twitter, “We can do hard things… and you just did!”

Para: quem já ouviu “Changes” de David Bowie em loop — e acredita que é mais do que uma canção
Disponível: Apple podcasts, Spotify

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.