Sabe aquela anedota sobre o Zé de Afife e o Papa? “Aquele ali é o Zé, toda a gente o conhece, mas quem é aquele sujeito vestido de branco ao lado dele?” Na Internet, não é uma piada. Basta passear uns minutos pelo Instagram: Cristiano Ronaldo, Justin Bieber, Glennon Doyle. Sim, Glennon Doyle. Mais de milhão e meio de seguidores, dois milhões de exemplares do último livro vendidos e um podcast que ainda antes de ter sido estreado, há duas semanas, saltou para o primeiro lugar do top da Apple. Nunca ouviu falar? Percebo.
É difícil de acreditar que isto ainda aconteça. Num mundo ultraglobalizado e sempre ligado, um fenómeno passar-nos assim ao lado. A voltar a fazer dos jornalistas correspondentes de lugares estrangeiros. “Em todas as épocas houve fenómenos com carácter escandaloso. Nesta, um desses fenómenos é o da juventude”, lia-se na revista Flama em 1961 sobre o rock’n’roll e o francês Johnny Hallyday. Passados 60 anos, sobre este outro fenómeno e caso esteja a perguntar-se (eu perguntei-me): é uma mulher, é americana e é, não líder de uma igreja, mas fundadora de uma “filosofia de vida”. O mantra mais repetido serve de título ao podcast: “We Can Do Hard Things”, “Conseguimos fazer coisas difíceis”.
Entre as coisas difíceis que Glennon Doyle, 45 anos, conseguiu fazer encontram-se lidar com a bulimia e o alcoolismo numa primeira fase da vida, as traições do marido numa segunda, e assumir uma relação com uma mulher, com quem se casou em 2017, a futebolista bicampeã olímpica Abby Wambach, numa terceira. Todos temas que deram direito a livros de memórias, três, como se ao contrário de qualquer um de nós, ela tivesse direito não a uma, mas a várias vidas. O título do último é Indomável (Cultura Editora), promovido como uma “galvanizante chamada para a vida”.
Doyle rejeita rótulos como “guru” e termos como “seguidores”, porque não quer que vão atrás dela. O que lhe interessa é ajudar as pessoas a sentirem-se “mais ativadas nas suas vidas”, explicou à revista The New Yorker. O método é o da honestidade radical, connosco próprios e com os outros, e o objetivo final trazer cá para fora o nosso verdadeiro eu. Sem capas de super-heróis. Ou como dizia em 2013, numa conferência TEDx, “Clark Kent é muito mais interessante que o Super-Homem”. O título da palestra é “Lições do Hospital Psiquiátrico”. Ela passou por lá. Tempos longínquos, mas marcantes, numa altura em que já era conhecida como autora de um best-seller (Carry On, não publicado em Portugal), baseado num blogue (Momastery), onde se reinventara como mãe cristã e a tempo inteiro. A meio da conversa, cita a pintora Georgia O’Keeffe. Parafraseando: “O sucesso é irrelevante. O que importa é tornar o teu desconhecido conhecido.” No original, “Whether you succeed or not is irrelevant — there is no such thing. Making your unknown known is the important thing (…)”
[a palestra de Glennon Doyle numa conferência TEDx:]
O mundo está cheio de livros de auto-ajuda. Agora que o áudio se assume cada vez mais como um mercado alternativo, chegam os podcasts e os audiolivros. E se a descrição sumária dos parágrafos acima parece apontar nesse sentido, o discurso de Doyle vai um pouco além. A meio caminho entre as fórmulas milagrosas e o garimpo demorado da psicoterapia ou da psicanálise. Ela tem uma frase curiosa. Que a religião é para as pessoas que têm medo de ir para o Inferno e que a espiritualidade é para quem por lá já passou. Mais do que um conceito incontestável é um exemplo acabado do que tem para oferecer: a tradução de sentimentos complexos em frases simples, a desmistificação das sombras, a enunciação do não-dito. A defesa de que, acima de tudo, é preciso pôr cá para fora. Depois, o storytelling. Mais do que histórias, parábolas. O evangelho segundo Glennon Doyle. Mas com um fundo de vulnerabilidade, que é a sua. E a tal honestidade radical. Depois do segundo best-seller, Guerreira do Amor (Nascente), chegou a pensar tornar-se “ministra” e foi aceite num seminário de Chicago. Altura em que uma influencer particular, uma professora do 8.º ano, lhe disse, “Tu já tens uma igreja. Só não tem muros.”
Com o podcast “We Can Do Hard Things”, Doyle afirma querer regressar às origens deste seu percurso de, à falta de melhor palavra, “influencer”. Ou pelo menos, a tempos mais tranquilos. E é chegada a altura de juntar a última peça ao puzzle. Durante a pandemia, tal como tantos outros casais, tanto ela como a mulher passaram a estar muito mais tempo juntas. Vai daí começaram, de forma aparentemente espontânea, a partilhar momentos do quotidiano. Um vídeo sobre a melhor forma de pôr a loiça na máquina tornou-se viral. Duas dúvidas:
- Que casal nunca discutiu sobre a melhor forma de pôr a loiça na máquina?
- Como é que de repente isso se torna um conteúdo irresistível?
Por coincidência, o período sobrepôs-se ao do lançamento de “Indomável”, que foi também um dos audiolivros mais ouvidos de 2020. Neste período, os seguidores de Doyle no Instagram duplicaram. Ao todo, o casal chega dois milhões e meio de pessoas, sem contar com partilhas de terceiros.
O formato do podcast é simples. Doyle fala, junta-se a ela a irmã, parceira inseparável (“eu penso em cores, a minha irmã pensa em folhas de excel”) e no final respondem a perguntas de ouvintes pré-gravadas. Em pleno pandemónio pandémico, o tema do primeiro episódio é a ansiedade. Poderia ser outra coisa? A mulher que consegue coisas difíceis sofre, claro, de ansiedade. E também de depressão. “É como se estivesse sempre um pouco triste, mas de uma forma muito intensa”, arranca. É para rir. Também aqui há humor. “’Triste’ e ‘assustada’ é onde vivo.” Ao longo de uma hora conta histórias suas, de amigos, de família. Fala de drogas, de dependência, descreve um ataque de pânico. Fala dos filhos e da gestão doméstica. Conta como se sentiu estranhamente calma no início da pandemia. E pouco depois percebeu que todos os amigos ansiosos e deprimidos comungavam da sensação. “Sempre vivemos assim”, conclui. Como se tivessem passado a vida toda a treinar-se para isto.
O tom é intenso. A voz um pouco irritante. E a duração podia ser encurtada em talvez um quarto. Ainda assim, damos por nós e ouvimos tudo. Discurso empático, ideias surpreendentes, frases pensadas e polidas ao longo de anos a falar em eventos literários e não só. “Para mim, ansiedade é não estar no momento. Por isso faço tudo o que consigo para voltar ‘ao momento’. Ir do ‘e se’ (‘what if’) para o ‘o que é’ (‘what is’).” Apetece agradecer.
Entretanto, já há mais dois episódios disponíveis. O primeiro sobre limites (“boundaries”), como estabelecê-los e, mais importante, lidar com as consequências. O mote é o momento em que se apaixonou por uma mulher e o difícil que foi contar à mãe. De novo, relata as dúvidas, os erros, as angústias. E a forma como conseguir resolver. “[Percebi finalmente que] Não me cabia a mim fazer as pessoas sentirem-se radiantes com a minha decisão.” Ou, “A única forma de se convencer alguém de que se está bem não é argumentar sobre isso é mostrar que se está bem.” O terceiro toca um tema também ele difícil e pessoal, a infidelidade. Durante o casamento com o modelo Craig Melton, Doyle percebeu que tinha sido traída dezenas de vezes. A irmã tem uma história ainda mais dolorosa. Da traição, veio um filho, de que ficou a saber por um acaso, ainda estava casada. O episódio arrasta-se. Torna-se mais insistente a ideia de que devia ser mais curto. Mas o público pede mais. E há-de ter, todas as terças-feiras.
Há no ecossistema das redes sociais uma distinção difícil, se não impossível, de se fazer. O que é autêntico e o que é encenado. O que é feito para vender e o que é intrínseca e indissociavelmente pessoal. Mas talvez esta seja uma preocupação de uma sociedade pré-Internet. Do Zé de Afife, ou do Moishe de Nova Iorque, porque parece que a piada do Papa será judaica. Como não, de resto? Porque sempre houve encenação. Porque cada um de nós é muitas coisas. E porque sempre procurámos luzes para nos alumiar o caminho. Fossem filósofos, estrelas rock ou messias. E numa altura de tanta incerteza, ainda mais.
À distância, há mais um pormenor insólito em toda esta epopeia, que é o momento em que a mulher que se define como uma “oradora motivacional clinicamente deprimida” se torna também política. Ou estende a influência dos seus valores, que vão da honestidade e à vulnerabilidade, passando pelo amor, à política. É a América podemos argumentar. Ou talvez não.
Durante a corrida contra Donald Trump, a equipa de Joe Biden pediu-lhe ajuda. Houve reuniões estratégicas. Apelos ao voto. O seu público de eleição – mulheres brancas, suburbanas, muitas delas conservadoras, que tinham começado a segui-la enquanto “mãe cristã” e acabaram por ficar pelo testemunho de força e resiliência – era fundamental. A dada altura é Elisabeth Warren, senadora democrata que chegou a estar na corrida para a Casa Branca, que diz publicamente, “A sua voz, num tempo de completa insanidade, é uma voz que nos lembra que todos temos um centro, que todos temos um coração.” Por fim, no momento de alívio global em que o mundo sabe que Biden ganhou, que Trump não será mais presidente dos EUA, o diretor de campanha escreve no Twitter, “We can do hard things… and you just did!”
Para: quem já ouviu “Changes” de David Bowie em loop — e acredita que é mais do que uma canção
Disponível: Apple podcasts, Spotify