Passei a última semana a lidar com as consequências de uma coisa aparentemente banal, que não devia ser nada difícil, mas que este mundo tecnológico conseguiu tornar completa, surpreendente e frustrantemente Kafkiana: passei a semana a tentar provar que eu sou eu mesmo. Devia ser simples, não devia? Mas não foi. E falhei sistematicamente em todas as tentativas.
Vamos por partes. Não, não sofri de amnésia: não reapareci no centro de uma cidade da Bielorússia qualquer, semi-nu, e sem memória de onde passei os últimos três anos (um dia hei de lá chegar). Também não fui vítima de roubo de identidade: não há (como conheço casos) um estranho de meia idade a usar o meu nome e fotografia numa conta no Facebook para convidar menores a passar umas férias no Algarve. Nem sequer fui hackeado — e sinto que me roubaram aí a possibilidade de uma história bem melhor para contar. Nada disto. Fiz só dois erros simples. E o sistema tratou do resto.
Erro número um: farto de criar um login diferente para cada ferramenta de trabalho, jornal, rede social, enfim, para tudo e literalmente um par de botas (uma vez tive de criar uma conta para mandar vir uns sapatos da Undandy. #RIP), comecei a associar todos os meus registos a uma só conta, a de email. Ou seja, escolhi a opção mais prática e conveniente: aceder a outros sites através de uma conta Google, para a qual necessitava apenas de saber a minha password do Gmail.
Erro número dois: nos últimos meses recebi vários avisos sempre que entrava no email, que me alertavam para o facto de a minha conta não ter número de telefone associado. Nunca o fiz. Em parte, tinha vontade de proteger a minha privacidade — era menos uma coisa que a Google sabia sobre mim (na verdade não era bem assim, mas já explico melhor). Depois, também fui movido pela minha tendência de procrastinar: “Trato disso depois, um dia destes”. Tal como estou a prometer ao meu computador que o atualizo amanhã, há cerca de seis meses.
Dois erros pequeninos, talvez, que tiveram grandes consequências quando decidi fazer um login num computador novo. Foi aí que a Google achou que aquele utilizador (eu) se calhar não era bem eu (mas era). E eu disse à Google que era eu, sim senhor. Só que a Google não ficou convencida: “Talvez sim, talvez não. Em caso de dúvida, vou desativar o teu email, fazer logout (terminar sessão) em todos os aparelhos em que estás ligado, fecho-te o acesso à Google Drive, onde tens guardado 10 anos de vida, de documentos importantes, trabalho e memórias; e retirar o acesso também às pessoas com quem partilhaste esses documentos”.
Respondi que me parecia uma medida um bocado extrema (como sou do Porto, têm de imaginar essa frase bem mais colorida, pontuada com uma série de palavras que agora não posso usar aqui). Mas foi exatamente isso que a Google fez.
Resumindo: durante 10 dias perdi praticamente tudo, não conseguia aceder a quase nenhuma das plataformas que usava para trabalhar ou comunicar e o apoio ao cliente não existia e/ou não me conseguia ajudar. Entretanto, ficou tudo resolvido, mas cheguei a algumas conclusões que gostava de partilhar:
1) Já diziam os ingleses que pôr os ovos todos no mesmo cesto escorre mal. E é verdade
Um dos grandes problemas com que deparei nesta aventura não foi só (só!) ter perdido acesso a dez anos de emails e todos os backups de todos os trabalhos que alguma vez fiz. Foi também o facto de ter perdido acesso a ferramentas com as quais trabalho diariamente, os Asanas, Airtables, e Slacks da vida (se não sabe o que isto é, caro leitor, invejo-o muito).
Se não tivesse sido preguiçoso e criado contas nestes sítios — e feito um esforço para não esquecer as cinquenta mil passwords que isso envolve (também há programas que que tratam disto, mas nunca recorri a eles) — se esta experiência não tivesse corrido melhor, no limite, teria sido menos má.
Simultaneamente, vivemos cada vez mais com a certeza de que, como se fosse Las Vegas, “o que está na cloud, fica na cloud.” Mas ao contrário das surubas e outros disparates que acontecem nessa cidade de bons casinos e maus costumes, a ideia aqui é a de que nada se perde na nuvem, tudo se encontra. É uma máxima dos dias de hoje: “The internet is forever,” ou seja, a internet é para sempre.
Famosas últimas palavras.
Soa um bocadinho à estátua de Ozymandias, duas pernas partidas e perdidas no deserto, a sua cabeça meia afundada na areia, enquanto o pedestal dizia orgulhosamente: “Contemplai as minhas obras, ó poderosos e desesperai-vos!” Porque vamos deixando os backups físicos tornarem-se uma coisa do passado. A verdade é que já ninguém tem discos externos, DVDs ou as usb pens.
Esta minha experiência pode aplicar-se à sociedade em geral. Se deixei de conseguir aceder a todo o trabalho que fiz durante o último ano, pegar no trabalho que tinha pendente e comunicar (estando, como podem já ter reparado, no meio de uma pandemia) com os meus colegas — só porque perdi acesso à cloud –, imaginem isto replicado numa grande escala.
O que aconteceria se um ataque cibernético ou uma falha de energia ou o rebentar de uma bolha deitasse abaixo a Google? O que aconteceria se um bloqueio americano fosse aplicado à Europa, e nos deixasse a todos, como São Pedro, às portas da Cloud?
Uma parte da economia parava.
Podia resultar em todo um appocalipse? (sic.)
Talvez não.
Pelo sim, pelo não, vou aprender a caçar e a fazer whiskey de banheira. E a criar contas para tudo.
2) Muitos de nós não somos clientes da Google, somos o que a Google vende
Um dia vão escrever livros sobre a minha demanda. Como Ulisses (o antigo, não o do James Joyce que me vi grego para perceber), viajei pela blogosfera fora, pelas redes sociais, e fui deparando com o ocasional especialista de apoio da Google. Um deles disse uma coisa interessante: que era política de empresa não ajudar quem não tem contas pagas. “O que faz sentido,” disse ele num email, “se pensares que estas contas se calhar custam muito mais dinheiro a manter do que trazem à Google.”
O que serve para relembrar aquela regra da internet: quando não pagamos pelos serviços de que usufruímos é porque nós não somos o cliente. Somos o produto.
O Gmail tornou-se a caixa de email de quase 50% dos utilizadores da internet. E a empresa não está propriamente a perder dinheiro com todos os anúncios que envia diretamente para as nossas caixas de correio. O motor de busca da Google tem 70,8% das pesquisas feitas no dia-a-dia (grátis, claro) e isso rende-lhes 147 mil milhões de euros por ano.
Eu já sabia tudo isso. O que é que não sabia? Que isso pode mudar. Que a empresa tem um produto chamado Google One, que permite a qualquer um de nós emergir do meio dos restantes “consumidores” e passar a pagar para ser cliente. E isso, reza a literatura comercial do mesmo, garante duas coisas que me tinham poupado muito trabalho: apoio ao cliente a sério; backups de telemóveis e computadores mais seguros. Digo já que não era cliente deles, mas agora sou.
3) Se queremos ir a jogo, temos de jogar pelas regras
A Google não é única empresa a operar no mercado e já há algumas alternativas para browser menos intrusivos em matéria de privacidade, como o Firefox ou o Brave, que fazem uma pequena parte do que a Google faz. Mas, na minha opinião, nada que se compare ao leque de serviços que a tecnológica de Larry Page e Sergey Brin presta e à forma como consegue ligar espaços de trabalho, equipas, pesquisas, agendas, etc etc.
Durante os dez dias em que estive barrado de tudo e em que metade das apps do meu telemóvel e todos os documentos do meu computador ficaram inacessíveis, aprendi algumas coisas. Por isso, o meu conselho é o de que não sejam como eu. Se querem mais privacidade, podem sempre abrir contas noutro lado. Se querem conforto, não se esqueçam de ter uma autenticação de dois fatores ligada à vossa conta, por exemplo. A recomendação é: “Olhem para o que eu digo. Não olhem para o que eu não faço”.
O meu problema com o login acabou por se resolver depois de muitas tentativas — e só tenho a agradecer à Google, que foi muito além do que era obrigada para me devolver aquilo que eu achava que era meu — e o meu acesso à conta foi desbloqueado. Mas estes algoritmos já sabem tanto sobre nós, que mesmo que não saibam o nosso número de telefone, acabam por seguir-nos por todo o lado. Vêem tudo. Sabem tudo. Vão no nosso telemóvel na mesma, onde temos o Gmail, o Google Calendar, os Google Drive instalado. Por isso, mais valia ter associado o raio do número de telefone à minha conta. Não se esqueçam disto.
*Francisco Peres escreve artigos a fazer pouco de anglicismos mas tem como títulos profissionais as palavras copywriter e content strategist. Até à data de publicação deste artigo trabalhava com várias startups, mas suspeita que isso está prestes a mudar.