Em 32 jogos em Wembley entre Inglaterra e Escócia, tinha havido sempre golos. Sempre. E se havia um encontro em que se esperavam muito golos era este, ou não se tratasse de um dérbi. Até meia hora do final, nem um.

A mais antiga e uma das maiores rivalidades entre seleções no futebol ganhava um novo capítulo em contexto de pandemia, com lotação dividida pelas circunstâncias mas ambições a multiplicar entre as duas equipas no 115.º duelo com resultados repartidos entre 48 vitórias inglesas, 41 escocesas e 25 empates. No entanto, e olhando só para encontros em fases finais do Europeu, só tinha existido um e ainda hoje memorável por um dos golos: a 15 de junho de 1996, já depois da vantagem dada por Alan Shearer, Paul Gascoigne soltou o seu génio, fintou com a bola por cima do adversário por um lado e rematou de pé direito no outro. De craque, mesmo. Por momentos parecia que Jack Grealish tinha entrado para ser o Gascoigne mas não, não houve o herói e acabou mesmo por imperar o Plano Marshall dos escoceses para sentenciar uma espécie de pacto de não agressão britânico.

Steve Clarke, antigo discípulo de José Mourinho na primeira passagem do português pelo Chelsea, fez quatro alterações na equipa recuando por exemplo McTominay para o lado direito da defesa a três e entrou com uma boa atitude, sem complexos e a jogar o jogo pelo jogo sem olhar a diferenças teóricas no plano individual. Ainda assim, bastava um pequeno susto perto da baliza de Marshall para essa resistência mudar, como aconteceu nos minutos seguintes a uma bola no poste de Stones após canto (11′). O intervalo chegaria com o nulo, entre mais duas ameaças dos ingleses e uma defesa apertada de Pickford para canto a remate de O’Donnell na área.

A mensagem de Southgate ao intervalo foi clara, com a Inglaterra a entrar a todo o gás e a ver Marshall impedir o golo de Mason Mount num remate de meia distância. Poderia estar criado o fosso final para o encontro passar a ter sentido único mas mais uma vez a Escócia foi ganhar pernas onde elas não pareciam existir, conseguiu de novo esticar a manta e causou perigo de bola parada, com Reece James a desviar perto do poste um remate do guerreiro Dykes aos 62′ (e se alguém merece o troféu Braveheart é ele). Depois, os ingleses começaram a ir ao banco puxar os trunfos entre alguns assobios por retirar Phil Foden e Harry Kane, Grealish e Rashford ainda mexeram com o jogo mas o nulo não foi desfeito com mais duas boas defesas de Marshall. A espuma que os adeptos escoceses espalharam em Leicester Square após deitarem detergente numa fonte chegou a Wembley e também a Inglaterra escorregou num jogo onde o rival mereceu o ponto que conseguiu resgatar.

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O jogo a três toques

Para recordar

A forma abnegada como a Escócia conseguiu corrigir os erros defensivos cometidos com a Rep. Checa fazendo duas alterações, colocando McTominay como central mais à direita que é sempre uma adaptação, e enfrentar um ataque com muita qualidade, versatilidade e mobilidade segurando a baliza de Marshall. Steve Clarke tem o seu mérito pela forma como montou a organização da equipa sem bola mas foi a linha recuada que mais deu nas vistas e permitiu até que os escoceses tivessem algumas saídas com finalização que poderiam causar outra mossa numa Inglaterra teoricamente superior mas que teve dificuldades em colocar isso mesmo na prática.

Para esquecer

A maneira como Gareth Southgate foi olhando para o encontro e tentou mexer na equipa – sendo que os adeptos ingleses também não terão gostado muito, ouvindo-se alguns assobios por retirar de campo Phil Foden e Harry Kane. Tanto ou mais do que as unidades que saíram, tanto ou mais do que as unidades que entraram (e Jack Grealish, até mais do que Marcus Rashford, foi muito saudado), o selecionador inglês demorou a mexer e nunca em setores que poderiam de facto ter introduzido uma real mudança no jogo, como nas laterais – que tiveram de início Reece James e Luke Shaw em vez de Trippier e Luke Shaw – ou no meio-campo.

Para valorizar

A festa feita pelos escoceses que se deslocaram a Londres (e foram muitos milhares, a grande parte não tendo bilhete para entrar em Wembley). Houve alguns excessos, entre adeptos na lama, mergulhos nas fontes, mortais juntos aos pubs, detergente que provocou uma inundação de espuma e muito lixo no chão, mas aquilo que é uma rivalidade histórica não ultrapassou as fronteiras mínimas como tantas vezes acontece. Os adeptos da Escócia foram verdadeiramente felizes, antes, durante e depois do encontro – e quem estava a ver de fora não podia deixar de pensar naqueles tempos pré-pandemia em que não se dava tanto valor a coisas tão simples da vida.