O único momento em que John McAfee se emocionou e acabou por chorar, enquanto debitava os episódios da sua rocambolesca vida a um editor, foi quando falou do pai. O criador de um dos programas de proteção contra vírus informáticos mais usados no mundo, a quem emprestou o apelido, recordou como este era violento e lhe batia “sem piedade”, muitas vezes movido a álcool. Só terminou tudo quando John tinha apenas 15 anos, e o pai se suicidou.
O fim de John McAfee não terá sido muito diferente. Aos 75 anos, preso desde outubro em Barcelona, Espanha, quando tentava chegar à Turquia passando ao lado de um mandado de detenção emitido pelos Estados Unidos por evasão fiscal, o multimilionário foi encontrado sem vida. Estava sozinho e, segundo fontes prisionais citadas pelo El Pais, terá cometido suicídio. Naquele dia tinha sido notificado da decisão da sua extradição para os Estados Unidos e pediu uns momentos a sós na cela. Foi encontrado depois já sem vida.
Com um “comportamento exemplar” na cadeia, a sua última década de vida foi em permanente fuga. Na rede social Twitter, onde chegou a ser utilizador ativo, descrevia-se como “Iconoclasta. Amante de mulheres, aventura e mistério. Fundador do McAfee Antivírus”. Mas em cada um destes destaques da sua vida, multiplicam-se histórias que protagonizou e que acabaram nas páginas de jornais de todo o mundo.
“Já fui chamado de paranoico, esquizofrénico, de filho selvagem do Silicon Valley”, reconheceu, citado pela BBC em 2013. Mas, na verdade, afirmou, John só queria “caminhar para o deserto para ver o que estava lá”.
John McAfee nasceu em 1945 no Reino Unido, filho de uma britânica que se apaixonou por um soldado norte-americano ali estacionado durante a II Guerra Mundial. Foi por isso que, ainda criança, emigrou para os Estados Unidos com a família e cresceu com um pai que descreveu como violento e alcoólico.
Depois da morte do pai, também ele começou a beber e a consumir drogas. Mas os vícios não o desviaram de um diploma em Matemática, que obteve com 22 anos. Na década de 1960, McAfee tinha uma carreira no meio académico promissora pela frente, quando veio a público que mantinha uma relação amorosa com uma aluna que orientava. Acabou expulso da universidade onde dava aulas, mas a oficializar o casamento com ela.
Com o cunhado, acabou por aprofundar os seus conhecimentos em programação. Passou por vários trabalhos em grandes empresas de tecnologia como a Nasa, a General Electric, Siemens, Univac ou a Xerox. Sempre a consumir álcool e droga. “A maioria dos meus chefes também usava algum tipo de droga”, chegou a dizer. “Eu estava na área de tecnologia, afinal éramos a vanguarda em tecnologia e a era líder em experimentação pessoal”.
Em casa, John McAfee tentava esconder as adições da mãe e da mulher. Mas sentia que não conseguia escapar. Às vezes, na empresa, estava a droga à disposição de todos na mesa, à hora de almoço. Chegava a ser “bizarro”, disse, citado pela BBC. Não conseguiu esconder muito tempo. A certa altura a mulher acabou por deixá-lo e, em 1984, John McAfee decidiu começar a frequentar reuniões de alcoólicos anónimos e tentar libertar-se das drogas.
Assim nasceu a McAfee, mãe do antivírus
Corria o ano de 1986 quando um dos primeiros vírus que mais estragos fizeram em computadores apareceu. Chamava-se “Brain”. Nessa altura John ligou a um programador que conhecia a dizer que estava ali a oportunidade da vida deles: tinham que criar um código que combatesse aquele vírus. Ao programa chamou VirusScan, e à empresa McAfee Associates, como todos ainda a conhecem — mesmo já depois de ter sido vendida.
A empresa prosperava e lucrava milhões, mas no seu computador pessoal, McAfee não confiava em nenhum programa. Mudava constantemente o IP do seu computador, não abria links que lhe enviassem por e-mail, nem frequentava sites suspeitos ou pornográficos. “Parece absurdo viver desta maneira, mas prefiro confiar nos meus próprios dispositivos e pensamentos.”
Em 2008, depois da falência do banco de investimento Lehman Brothers, e a crise financeira que se seguiu, o empresário perdeu uma fortuna e decidiu emigrar para Belize. Além de pagar menos impostos tinha um novo projeto de vida: em vez de procurar um remédio para os vírus virtuais, queria criar agora um antibiótico natural. Por esta altura vendia também a McAfee.
Com a informação de que as bactérias comunicavam entre si, tornando-se mais fortes, a ideia era encontrar plantas cujos compostos inibissem essa comunicação e impedissem o ataque — plantas que acreditava poder encontrar nas margens do Rio Novo, naquela região.
As autoridades policiais chegaram a pensar que o empresário estava a criar uma droga ilegal, como uma anfetamina. E, segundo o próprio, chegaram mesmo a aparecer-lhe várias vezes em casa, onde tinha vários seguranças armados, para lhe confiscar o passaporte e as licenças de posse de arma. Ninguém acreditava no objetivo do seu laboratório, para o qual chegou a contratar vários habitantes locais, nem depois de fazer várias doações à polícia na tentativa de conquistar a sua confiança.
John McAfee, criador do antivírus, encontrado morto na prisão
A namorada de 16 anos e a fuga
Um dia John McAfee estava num bar quando o dono lhe disse que uma rapariga o queria conhecer. Amy Emshwiller, que chegou a ser prostituta, apresentou-se e acabaram por se envolver. Só mais tarde, assegura, é que soube que ela tinha apenas 16 anos. Com um historial de abusos, assim como muitas outras adolescentes com quem assumiu ter mantido relações, Amy ainda o tentou a matar, uma vez a tiro, outra vez à facada. Mas ele perdoou-a sempre. Achava que estava traumatizada.
“Ele é doce, generoso. Gosta de gostar de aventuras. É sério e geralmente tem um sentido de humor negro”, chegou a descrever a rapariga.
John McAfee nunca deixou de ser notícia. Em 2012, porém, o motivo era outro. Tinha desaparecido depois de o vizinho ter sido assassinado com um tiro na cabeça e era considerado pelas autoridades uma peça fundamental na investigação. Gregory Faull, de 52 anos, tinha alguns atritos com o vizinho por causa dos cães que mantinha na sua propriedade.
O milionário, em parte incerta, acabaria por fazer declarações à Wired e explicar que após o crime sentiu medo, porque pensou que podia ser ele o verdadeiro alvo e não Gregory Faull. Disse mesmo que quando viu os polícias chegarem ao local se enterrou na areia e pôs uma caixa de cartão na cabeça para não ser descoberto. Acreditava ser perseguido. Mais tarde, as autoridades vieram esclarecer que nunca olharam para ele como um suspeito do homicídio, mas como uma possível testemunha.
O El Mundo recorda como foi depois encontrado em Guatemala, de onde foi extraditado para os Estados Unidos, onde acabou mais tarde a enfrentar um processo de evasão fiscal pelo qual foi detido em Espanha.
Chegado aos Estados Unidos, e em liberdade, contratou os serviços de uma prostituta e acabou a conhecer Janice Dyson, por quem se apaixonou. Os dois tornaram-se inseparáveis. Acabaram por casar e mudar-se para o estado de Óregon, onde McAfee se tornou obcecado pelas criptomoedas, o dinheiro virtual que podia tornar transparentes os autores das transações financeiras. Foi aqui que investiu o seu dinheiro e que arrecadou milhares de dólares que não declarou. Aliás, chegou a considerar que os impostos deviam ser ilegalizados.
Em julho de 2017, ainda sobre o dinheiro virtual, prometeu que se nos três anos seguinte a bitcoin não atingisse os 500 mil dólares comeria o seu órgão sexual, em direto numa televisão. Palavras que, para uma personalidade excêntrica como a dele, nada chocaram. Aliás, já antes tinha aparecido em cuecas no seu canal de Youtube rodeado de mulheres, armas e drogas.
When I predicted Bitcoin at $500,000 by the end of 2020, it used a model that predicted $5,000 at the end of 2017. BTC has accelerated much faster than my model assumptions. I now predict Bircoin at $1 million by the end of 2020. I will still eat my dick if wrong. pic.twitter.com/WVx3E71nyD
— John McAfee (@officialmcafee) November 29, 2017
McAfee chegou a ser detido alcoolizado na posse de um arma, em 2015, para meses depois anunciar a sua candidatura à Presidência dos Estados Unidos. Perdeu e anunciou mais tarde que voltaria a tentar nas eleições seguintes. Mas em 2019 acabaria formalmente acusado de evasão fiscal por não declarar nenhum ganho desde 2010, ele que tinha investimentos, que tinha cedido os direitos para um documentário sobre a sua vida, tinha voltado às conferências e até tinha sido visto a passear num iate, com o qual entrou na República Dominicana — onde foi novamente detido, por ter entrado ilegalmente no país e estar na posse de armas.
Na prisão dominicana conseguiu obter um telefone e chegou a partilhar várias fotografias da sua vida encarcerado. Mas foram apenas alguns dias. Para resolver a situação, as autoridades decidiram mandá-lo para o seu país natal: o Reino Unido. Ficaram-lhe com o iate e com as armas e mandaram-no num avião com a mulher para Madrid, para depois seguirem rumo a para Londres. No percurso, McAfee aproveitou por fazer uma verdadeira campanha no Twitter a dizer tratar-se de um fugitivo internacional.
O casal até pode ter passado pelo Reino Unido, mas foi em Barcelona que acabou apanhado, quando se preparava para ir para a Turquia. Nesta altura, já os Estados Unidos tinham emitido um mandado de detenção internacional. E foi por ele que a polícia catalã o deteve e manteve na prisão, onde acabou por morrer.
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