Sabe, tenho andado preocupada. Primeiro, que esta rubrica esteja a tornar-se demasiado elitista, com tantas sugestões de podcasts falados em inglês. Depois, com isto do envelhecer. As rugas que se instalaram à boleia da pandemia, as dores no fundo das costas, os dias que agora passam não se percebe se a correr se muito devagar. Como em tudo, também aqui há notícias. Uma boa, outra má. A boa é que acaba de se estrear um podcast que nos ajuda a lidar com o colagénio em fuga. Que, entre algumas lágrimas e muitas gargalhadas, nos faz ambicionar ser tão livres e frescos como os seus protagonistas maduros. A má é que, lá está, é falado em inglês.

Lançado em maio na plataforma Audible, “Growing Old Disgracefully” (algo como “Envelhecer de Forma Vergonhosa”) apresenta um grupo de homens e mulheres aparentemente imunes aos preconceitos da idade. São seis, um por episódio, todos com mais de 69 anos. “Um número muito apropriado”, comenta a anfitriã de 80 anos, Miriam Margolyes, logo depois de se apresentar e acrescentar que é lésbica. A revelação marca o tom. Sem filtros, sem vergonha, sem medo. Já ninguém tem tempo para isso. Quanto à cidadã sénior em causa, a mais jovem das convidadas, é uma mulher que depois de abandonada pelo marido se tornou “dominatrix”. “A minha idade é uma grande vantagem”, explica.

Margolyes narra, contextualiza e entrevista os protagonistas, em episódios que rondam a meia hora. São perguntas espontâneas, de uma curiosidade autêntica, muitas vezes desconcertante. Poderá reconhecer a atriz do papel de Professora Strout nos filmes de Harry Potter ou, já há mais anos, de “A Idade da Inocência”, de Martin Scorsese, papel que lhe valeu um BAFTA. Grande parte da visibilidade, contudo – e salvo a contradição – veio-lhe da voz, usada em programas de rádio, dobragens e até um áudio erótico, Sexy Sonia. Nota-se o à-vontade. Logo de início, alerta: “algumas das histórias que estas pessoas contam e algumas das palavras que usam para descrever as suas experiências podem ser – como dizê-lo? – um bocadinho crescidas.” No final, pede alguns conselhos aos convidados. O que podem ensinar-nos sobre viver a vida ao máximo, quer se tenha 19 ou 90 anos?

Por exemplo, muito mais do que uma narrativa picante sobre BDSM, o primeiro episódio versa a superação. Sherry Lever tinha 59 anos quando, ao fim de 25 anos de casamento, foi abandonada pelo marido com os três filhos dos dois e as dívidas que eram só dele. Chorou durante três meses. “Fui muito egoísta”, reflete. “Nem pensava que os meus filhos tinham perdido um pai.” Em risco de perder também a casa, teve de usar um verbo muito em voga: “reinventar-se”. A solução surgiu-lhe num documentário sobre sexo por telefone que viu de madrugada na televisão. “Não sabia nada sobre nada. Estudei, comprei livros, pesquisei on-line.” Só depois avançou pelo campo da dominação. “Nunca desistam”, conclui. “Se não estão contentes, façam alguma coisa para mudar. Se têm um homem na vossa vida, assegurem-se que é porque o querem, porque não precisam dele.” Hoje, diz ter descoberto um lado sádico em si. E pretende manter-se em atividade pelo menos até aos 80 anos.

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Segue-se a história comovente da culturista Ernestine Shepherd, que só começou a treinar aos 71, depois da morte da irmã, e que passados três anos estava no livro dos Recordes do Guiness. Aos 84, embora já não compita, continua a seguir os seus três “D” no ginásio: dedicação, determinação, disciplina. Basta acompanhá-la no Instagram para comprovar. Outro é o autor do primeiro álbum de música country gay da história, Patrick Haggerty, que aos 70 anos, depois de uma vida dedicada ao ativismo, viu o disco ser desenterrado e reeditado. Lavender Country catapultou-o de volta aos palcos e às páginas dos jornais. Passados sete anos, prepara a reedição do segundo LP, previsto para janeiro.

Há também lugar para Anne Youngson, uma escritora de best-sellers que lançou o romance de estreia, Meet Me at the Museum, quando já tinha 70 anos. “Tive de ultrapassar a ideia de que ‘sou demasiado velha para isto’”, conta. “Isto não é sobre quão velha sou; é sobre aquilo que adquiri.” E ainda para Shirly Curry, uma “gamer” de 85 anos com perto de um milhão de seguidores no YouTube e uma personagem em nome próprio no jogo de role-playing que a tornou famosa, “The Elder Scrolls V: Skyrim”. Por fim, Graham Walters, que em abril do ano passado, aos 72 anos, se tornou o homem mais velho do mundo a atravessar o Atlântico sozinho e a remos. “Ele é, e digo isto de forma carinhosa, completamente maluco”, sintetiza Margolyes. Face ao repto do desportista para nunca desistirmos dos nossos sonhos e procurarmos sempre novos desafios, a atriz assente, “Não sou muito física, mas estou viva.”

Em setembro de 2018, o cantor Nick Cave começou a responder a perguntas de fãs online. Não questões intrusivas ou superficiais, mas dúvidas existenciais, filosóficas mesmo. Como se de uma consulta ao deus informal do rock na Igreja da Internet se tratasse. Já este mês, a propósito de estar quase a completar 40 anos, um fã belga pedia ao músico que partilhasse a sua visão sobre envelhecer. “Deixa crescer um bigode e aprende a tocar guitarra elétrica”, aconselhou Cave. “E tenta aguentar-te até aos 60.” Nessa altura, “vais perceber que já não tens de te preocupar com o que as pessoas dizem e, em consequência, a vida vai tornar-se muito mais interessante.” Vale a pena ler o texto completo. A defesa da liberdade, do habitar do lado de fora do debate, do existir para sempre “na ponta errada do pau.” O direito a envelhecer de forma vergonhosa.

Mais ou menos na mesma altura, o ator Bruno Nogueira chamou a atenção no Instagram para o humanismo que a idade pode trazer. A intervenção veio no seguimento de uma crítica da atriz São José Lapa ao programa do humorista para a SIC, “Princípio, Meio e Fim”. Num post ilustrado com uma imagem de Através do Espelho de Ingmar Bergman, Nogueira escreve, “Envelhecer bem é uma arte tão bonita como difícil”. E dá o actor Ruy de Carvalho como exemplo. “Porque aos 94 anos tem nele o espanto de todas as idades.”

As histórias de qualquer uma das personagens que dão vida a “Growing Old Disgracefully” são extraordinárias, como se anuncia. O que mais impressiona, porém, é a energia. O desejo. A vitalidade. Não é demais repeti-lo: em tempos de fechamento e morte, estas pessoas escolheram a vida. Diz-se em português que “velhos são os trapos”. Também há seres humanos velhos, e são de todas as idades. O segredo, repete cada um dos protagonistas destes episódios, cada um à sua maneira, é nunca desistirmos do que nos dá prazer, nem deixar que a idade se intrometa.

O quê? “Growing Old Disgracefully”, por Miriam Margolyes
Para quem? Todos aqueles que desejam, não viver para sempre, mas viver ao máximo enquanto dure.
Onde? Audible