Pode a câmara, a fotografia, o cenário, mudar por completo a perceção de um enredo? A resposta é, obviamente: sim. Mas fazer disso coisa de ADN, ser um motor para empurrar a narrativa de uma personagem, para a ir descobrindo através desse dispositivo, é algo que raramente se vê na ficção televisiva. E toda a força de “Kevin Can F*** Himself” está assente precisamente na ideia de que isso funcionará. E funciona. Funciona até muito bem. A série, que se estreia esta segunda-feira no AMC, às 22h50, conta com Annie Murphy (“Schitt’s Creek”) no papel principal. E quem é Kevin? O seu marido (Eric Petersen), o abominável do seu marido.
Eis a proposta: Allison McRoberts (Annie Murphy) é uma personagem que vive no mundo da ficção – e é importante vê-la como tal. É o resultado de fórmulas televisivas, de géneros e formatos arrumados que comunicam de imediato com o espectador. Não é ela que o explica, nem um narrador. Tudo é contado através da fórmula especial de “Kevin Can F*** Himself”. Allison é apresentada como uma mulher que habita numa série multicâmara, com cores vivas, gente na sala – marido e amigos –, como se aquele espaço fosse o único local de convívio e de ação de uma família norte-americana. O cenário cria familiaridade espontânea, as gargalhadas pré-gravadas fazem o restante trabalho de dizer ao espectador que a vida de Allison é uma sitcom norte-americana. É, também, o saco de pancada da conversa, a mulher submissa com um marido imbecil.
[o trailer de “Kevin Can F*** Himself”:]
Mas Allison também sai da sala. E, quando sai da sala, “Kevin Can F*** Himself” transforma-se numa série de cores cinzentas, um drama infetado com desespero, com uma câmara a seguir as ações da protagonista. Allison também muda de atitude: a aparentemente feliz, prestável e recetiva donzela da sala-de-estar torna-se uma mulher desesperada. Está farta daquilo. Está farta das promessas do seu marido. Está farta de não ter controlo sobre a própria vida.
A forma como “Kevin Can F*** Himself” se desenrola não é apenas argumento, é uma forma de contar a história. À medida que o faz, torna-se igualmente um motor para obrigar Allison a agir. A grande inovação de “Kevin Can F*** Himself” passa menos por este contexto narrativo de apresentação e mais pela forma como a personagem-Allison quer ser outra pessoa, a dicotomia entre uma e outra versão que vemos dela: não quer ser a mulher prestável de uma sitcom, nem a deprimida de outra. Quer que a sua vida avance e, claro, que Kevin se vá f****.
A provocação do título quer ser também uma chamada de atenção para as fórmulas em que esta série funciona. A Allison que nasce do confronto entre os dois modos que o espectador vê a série é uma Allison que também lhe quer mostrar os estereótipos errados que vivem na ficção televisiva e de como são perpetuados através dela. Kevin é um homem trabalhador cuja ambição termina no seu bem-estar. Montou objetivos de vida bem baixos e assim que cumpridos – ou próximo disso – deixa de ser necessário olhar para o horizonte. Kevin conseguiu também aquilo que se designa como uma “trophy wife”, a mulher “perfeita”, e a sua personagem vive com a convicção de que o divórcio não é uma realidade neste género de sitcom. Porque, geralmente, não o é.
Por essa razão, age por egoísmo, nada faz para a agradar. E, quando o faz, é apenas para ter uma pequena vitória. A mulher é também uma piada, um objeto com o qual se goza junto dos amigos e de tudo o que é exterior àquela casa. Há muitos Kevins nas sitcoms norte-americanas, mas os Kevins não são desmascarados como se faz nesta criação de Valerie Armstrong. E tal como há Kevins nas sitcoms, também há muitos dramas em voltas de Allisons, mulheres presas em casamentos horríveis e que têm de encontrar uma saída.
“Kevin Can F*** Himself” é essa saída. Uma saída através de uma comédia negra sobre uma mulher que tem de mudar de vida. Allison é essa mulher/personagem, Annie Murphy a atriz que veste a pele das diferentes Allison e faz de “Kevin Can F*** Himself” entretenimento oportuno, que obrigará o espectador a repensar em inúmeras séries que viu. Nas séries e nos maridos insuportáveis que cabem no pequeno ecrã.