Os argumentos da Iniciativa Liberal para reabrir o debate sobre a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (CPDHED) e para propor a revogação do artigo 6.º estavam anunciados. No projeto de lei apresentado constava 16 vezes a palavra censura e João Cotrim Figueiredo repetiu-a várias durante o discurso de arranque do debate. A certa altura, já a discussão caminhava para o fim, António Filipe desmascarava a teoria do colega de bancada, Duarte Alves, para dizer que este era um “debate entre os cartistas que defendem o artigo 6.º e aqueles que no dia 20 de julho defendem a sua revogação, os vintistas”.
Venceram os primeiros, numa troca de opiniões extremada e acesa, em que PS, BE, PAN e a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues votaram contra as propostas de IL e CDS, enquanto PCP, PEV, PSD, CDS, IL, Chega e quatro deputados do PS (Ascenso Simões, Jorge Lacão, Sérgio Sousa Pinto e Marco Perestrello) mostraram ser a favor. Pedro Bacelar Vasconcelos absteve-se na dos liberais e votou a favor da proposta dos democratas-cristãos. Além dos chumbos, os deputados votaram ainda por unanimidade que as propostas de PS e PAN baixassem à comissão após requerimento dos partidos.
No início do debate com fixação da Ordem do dia requerida pela Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo começou por um “alerta para relembrar que a liberdade é preciosa e que a sua conquista não é irreversível“. Aos olhos do liberal há sinais “inegáveis” de que, em Portugal, “a convicção e a coragem de defender a Liberdade começam a escassear”. Para o exemplificar, usou a pandemia da Covid-19, uma altura em que foi “demasiado fácil, dentro e fora do estado de emergência, trocar as liberdades por uma suposta segurança”.
O líder da IL notava que neste momento há muitos portugueses que já nasceram depois do 25 de Abril e não sabem o que é viver sem liberdade. E sem essa liberdade de expressão, realçou, “não há progresso científico, nem produção de conhecimento”. “Não podemos permitir que esta liberdade fundamental seja coartada“, avisou, frisando que a revogação do artigo 6.º era uma “oportunidade” de “corrigir” a posição da IL, que em outubro votou contra, mas que se absteve na votação final.
Para que tal acontecesse, João Cotrim não tinha dúvidas: era preciso que o artigo fosse “pura e simplesmente” revogado, por ter disposições que, “mais do que inúteis”, considera “perigosas e inaceitáveis”. Para o líder liberal, havia ainda uma questão que se sobrepunha no debate, o facto de ter sido o PS a introduzir na lei “de forma forma ardilosa e subreptícia” estas questões, que compara a carta com as indicações da UE. “O Plano Europeu exclui da definição de desinformação: ‘As notícias e comentários claramente identificadas como partidários’, ou por outras palavras, exclui as opiniões políticas. A versão do PS não o faz”, esclareceu. Contudo, o líder da IL acusou o PS de pretender “controlar o discurso político online”, o que disse ser “taxativamente inaceitável”. A IL considera que “o PS e o Governo sabem bem que o que propuseram na Carta é inaceitável em qualquer país democrático” e, por isso, não incluiu “nenhuma destas disposições no texto da Declaração de Lisboa aprovada na Assembleia Digital”.
O artigo 6.º, insistiu Cotrim Figueiredo, tem “uma abordagem à desinformação que abre a porta à censura e à autocensura”, ao apontar que “a verdade é que a única maneira de combater a desinformação é com mais e melhor informação, com cidadãos mais autónomos e mais independentes, com uma sociedade menos submissa e mais habituada ao escrutínio e à crítica”. Para o exemplificar, o líder da IL falou da China como uma das “ditaduras repressivas”, mas também de Cuba, Irão, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Síria, Turquemenistão ou Vietname que, disse, “sentem a necessidade de terem sistemas de controle do discurso público para preservar a ‘verdade oficial’”.
PS recusa ideia de censura e diz que “selos de qualidade não precisam da tutela”
Se por um lado, ao longo do debate, a direita parabenizou a IL por trazer o tema de volta, o PS desmontou os argumentos de Cotrim Figueiredo e contra-atacou ao pedir menos drama ao deputado único. Primeiro pela voz de Constança Urbano de Sousa, que disse ter “ficado na dúvida” se Cotrim Figueiredo “leu” o artigo 6.º e garantiu não ver “qualquer pingo de censura”, parafraseando mesmo Marcelo Rebelo de Sousa para dizer que se pode achar que é “mais bem escrita ou mal escrita, mas censura não”. E depois por José Magalhães: “Não vale a pena dramatizar”, pediu o deputado socialista, enquanto alertava para que não se fechem os olhos e cruzem os braços porque “não se pode dizer que a única solução seja nada fazer”, até para não se alimentarem casos como a “lixívia a la Trump ou elogios à cloroquina a la Bolsonaro”, que usou como exemplo.
O deputado socialista lembrou que a carta assenta em quatro pilares fundamentais, um “apelo aos cidadãos para questionar fake news”, uma “defesa da liberdade de imprensa”, um “reforço da dinâmica de verificação de factos” e o “assegurar do direito de queixa dos cidadãos infodemia”. Sem medo e sem inércia, o PS insistiu no artigo 6.º e lembrou o estado da imprensa em Portugal para justificar a necessidade do mesmo.
Na resposta, Cotrim Figueiredo não demonstrou dúvidas da qualidade da carta em muitos pontos, mas recusou o “cenário da desgraça” da comunicação social apresentado por José Magalhães, ao dizer que o PS não tem “alternativa” para os media sem ser que estes fiquem “debaixo das saias do Estado”. O deputado da IL contrariou o PS e insistiu no facto de as opiniões estarem incluídas no artigo e no porquê de o PS não abdicar deste ponto. “Não contem connosco para a discussão, mas não metam na boca que queremos estatizar a comunicação social”, respondeu o deputado do PS, que rejeitou trazer “fantasmas” para o debate.
António Filipe, do PCP, que votou a favor do diploma da IL e do CDS explicou que o partido não concorda com tudo, mas insistiu que “artigo 6.º é grave e não deveria ter passado”. Contudo, considera que devia ter havido mais celeridade no processo, com o deputado a lembrar que houve muitas pronúncias, debates e votação final global e que “só no momento em que lei estava publicada é que se faz um clamor na comunicação social”. É um “acordar fora de horas”, apontou. Perante a questão, Cotrim Figueiredo acredita que a pandemia pode ter “desviado” as atenções, mas deixa claro que agora há a “oportunidade de corrigir esse tiro”.
CDS cita Voltaire e chama o “irritante” à discussão
Pela voz do CDS, Telmo Correia desvalorizou o tempo para dizer que o importante é ter-se “chegado aqui”, nomeadamente pelo facto de ter havido uma discussão que levou a uma reflexão nos partidos e na sociedade. Para o CDS, a intervenção de José Magalhães esclareceu todas as dúvidas já que em matéria de liberdade de expressão acabou por “reconhecer que o irritante é existência de opiniões políticas que não concorda”. O deputado do CDS disse não concordar com as notícias difundidas por Trump e Bolsonaro, mas recusou a ideia de que não se possa ter opinião. Para o justificar, Telmo Correia citou Voltaire: “Não concordo com o que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres.”
Porfírio Silva, do PS, trouxe o exemplo do deep fake de Barack Obama, ao comparar com cenários que podiam acontecer em Portugal e sobre as consequências disso, ao alertar para a necessidade se fazer algo e de não se cruzar os braços. Cotrim Figueiredo interpelou o deputado do PS para realçar que os “exemplos que deu já estão cobertos pela lei e não faz sentido agitar com fantasmas”. Uma opinião corroborada por Telmo Correia.
PAN propõe que se eliminem os selos de qualidade
Nelson Silva, do PAN, considera que o projeto da IL surgiu “completamente fora de tempo” e que tem apenas como intuito “lançar este debate em busca do soundbite fácil”. “Como se pode falar em censura quando no artigo 8.º se fala “no direito a exercer liberdades civis e políticas sem censura ou discriminação” ou quando no artigo 3.º se impedem as discriminações no acesso livre à internet em função das convicções políticas ou ideológicas?”, questionou o deputado, frisando que é importante que “não se ignore que qualquer interpretação ou aplicação da lei que se traduza, mesmo que de forma remota, em censura será sempre violadora desta lei e poderá ser sindicada por via judicial”.
Sobre os selos de qualidade, outro dos pontos que mereceram destaque no debate, o deputado afirmou que “não se pode usar este selo para pôr em causa o Direito à proteção contra a desinformação” e que este “pode dar azo a interpretações erradas e perigosas que não cumprem aquela que foi a intenção do legislador e que podem ser violadoras de algumas das suas disposições”. Como tal, o PAN pede que não se alimentem mais equívocos e propõe a eliminação dos selos. “Em Portugal diversos meios de comunicação social adotam mecanismos de fact-checking ou de livre vontade sujeitam-se a eles. Portanto, estes mecanismos já existem, funcionam bem e devem, tal como até aqui, continuar no âmbito da sociedade civil e dos órgãos de comunicação social”.
José Luís Ferreira, do PEV, considera que as propostas do PS e PAN “passam ao lado” da revogação do artigo 6.º e, na opinião do deputado, o que se impunha era revogar o artigo e não proceder a “remendos”. Contrariamente, Pedro Filipe Soares, do Bloco de Esquerda, não concordou com a ideia de “censura” apresentada pela IL e não aceitou a noção de que as organizações e as pessoas é que devam resolver o problema das fake news. Desta forma, o BE votou contra a revogação deste artigo porque esta seria uma “autoestrada para que campanhas de desinformação pudessem existir”.
Contudo, o deputado do BE também se mostrou desagradado com o PS e realçou que “quem faz serviço público deve ser pago por isso [os media que fazem fact checking] mas o apoio não se deve ficar por isso”.
André Ventura mostrou-se de acordo com a proposta da IL e deu o exemplo que “nenhum país europeu tem uma regra como esta”, ao dizer que esta “não é inovadora, é censura”. “Querem impor a maior das censuras contra este país”, acusou o deputado do Chega, frisando que o PS não o conseguirá fazer.
PSD acusa PS de estar “cego pela paternidade” da carta
O PSD ficou quase para o fim do debate e Paulo Rios de Oliveira começou por dizer que “a liberdade de expressão é como a saúde, que ganha importância quando está ameaçada”. Para os sociais-democratas é importante lutar contra a desinformação, mas o debate “não tem de acabar hoje”. “A desinformação pode derrotar a democracia, é altura de continuar a democracia a falar”, alertou o deputado. Também a deputada Sara Madruga da Costa alertou para a necessidade de um “debate alargado” que incluísse a sociedade civil por estar “muito longe” dos consensos necessários nesta matéria e frisou que o PS está “cego pela paternidade de uma carta que tem um problema do artigo 6.º”, ao frisar que o caminho da UE não é aquele que foi apresentado pelos socialistas. “Não há nenhuma identidade pública para veracidade dos factos”, insistiu a social-democrata, realçando que o problema é “complexo”, que é preciso uma “solução equilibrada” e sugerindo que esta discussão seja feita em setembro, apesar de assumir que é preferível a revogação do artigo à proposta do PS.
Carta dos Direitos na Era Digital aprovada por maioria no parlamento
Em abril, a Iniciativa Liberal absteve-se na votação final, juntamente com o PCP, PEV, Chega, da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, que foi promulgada a 8 de maio deste ano.