A maneira como a campanha promocional de Donda — o décimo disco de Kanye West — entrou em movimento dificilmente poderia ter sido mais eficaz. Jogo seis da final da NBA, os Milwaukee Bucks a caminho do segundo título da sua história, carregados por um super Giannis Antetokounmpo que redescobriu a pontaria da linha de lance livre (17 em 19, caramba), marcou 50 pontos no jogo mais importante da sua carreira até agora e despachou a coisa ali. Um dos intervalos deste encanto contou com a voz de Kanye numa espécie de mantra, num anúncio dos novos auscultadores Beats com a presença de Sha’Carri Richardson, a atleta norte-americana recentemente afastada dos Jogos Olímpicos do Japão depois de ter acusado positivo num teste antidoping porque tinha fumado marijuana. O tema veio com o título “No Child Left Behind”, a data para um livestream estava anunciada e faltava pouco para confirmar que vinha mesmo aí um disco novo.
Um anúncio que parece ter vindo do nada e aconteceu pelas 3h da manhã em Portugal, na madrugada desta sexta-feira, por isso quando passado alguns dias a listening party deste disco, anunciada para a 1h, teve um atraso de duas horas, os europeus que por acaso tenham passado o último mês a seguir os playoffs da NBA e que quisessem ver isto em direto tiveram direito a mais uma madrugada. Uma espécie de indiferença do rapper quanto ao sono em condições de um nicho relativamente específico. Em duas horas de stream, pudemos ver as bancadas do estádio Mercedes-Benz em Atlanta, casa dos Atlanta Falcons, a encher lentamente para ouvir o que de novo Kanye tinha para nos oferecer, depois de um início em que observámos a cobertura do estádio a abrir para ser acompanhada pelas luzes e projeções no relvado, transformado em palco coberto de branco.
E foi sozinho, sempre em silêncio, a caminhar pelo relvado dos Falcons ao longo de cerca de cinquenta minutos, rodeado pelas bancadas já cheias do estádio, que Yeezy apresentou este décimo disco. Donda é dedicado à mãe de Kanye, falecida em 2007. Uma perda que é sempre vista como um momento absolutamente marcante na carreira do rapper, e num ano em que também passou por um divórcio com Kim Kardashian — que esteve presente — separação com uma proporção mediática enorme. Por tudo isto, não seria de esperar menos do que um disco com uma carga pessoal bem elevada e foi mesmo isso que ouvimos.
Em jeito de nota sempre limitada pelo perigo da primeira impressão, parece um álbum que vem com a sonoridade de Kanye na vida pós-The Life Of Pablo. Canções curtas, quase sempre com um registo de algum improviso gospel, continua a parecer que andamos há alguns anos a ouvir o caderno de notas de West e que o espírito de perfeccionismo implacável que definiu os trabalhos de outros tempos simplesmente já não está lá. “This the new me, get used to me”, diz-nos a dado ponto do disco e parece que o melhor é mesmo ir por aí.
Num registo em que Kanye parece voltar a ser feliz a servir mais de curador e produtor do que propriamente rapper — contámos um ou dois versos do próprio — a lista de colaborações é impressionante, com Pusha T, Playboi Carti, Travis Scott ou Lil Baby. Mas a mais sonante de todas fecha o disco e é mesmo Jay-Z, o que parece marcar o final de alguns anos de desencontro entre os dois e anunciar a sequela de Watch The Throne, colaboração entre os dois que está mesmo a fazer 10 anos e que deixa qualquer um feliz por ter ficado acordado. Depois disto, uma pequena vénia do anfitrião e estava apresentado Donda.
A altura em que Kanye West lança um disco é conhecida pelos seus fãs mais militantes como “Yeezy Season”. Acompanhar uma “Yeezy Season” nos sites dedicados a Kanye (com o r/kanye no Reddit em destaque) é como observar uma espécie de síndrome de Estocolmo a desenrolar-se. “Yandhi”, “Yeezus 2” ou “Turbo Grafx 16” são só alguns dos projetos que o rapper anunciou, com datas e tudo, e que nunca se materializaram. Por isso, eventuais percalços — como as duas horas de atraso do livestream ou a transmissão fora da agenda da Apple Music — são encarados com o misto de pânico e resignação esperados de quem viu o músico de eleição a candidatar-se às últimas presidenciais americanas. Mas Donda parece mesmo que vai sair e, ao décimo disco, não há muitos artistas que ainda consigam criar esta ideia tão megalómana de evento.