A pintora Graça Morais anunciou esta quarta-feira que vai doar mais 70 quadros avaliados em meio milhão de euros ao acervo do Centro de Arte Contemporânea de Bragança, que soma dezenas de obras doadas por artistas nacionais e estrangeiros.

Graça Morais é a mentora deste espaço com o nome da pintora transmontana e que, nos últimos 13 anos, levou a Bragança obras de artistas de renome que têm doado trabalhos para o centro que se tornou numa referência da arte contemporânea.

Graça Morais foi a primeira a oferecer 52 quadros, aos quais junta agora mais 70, no valor de meio milhão de euros, como avançou a pintora à Lusa.

Segundo disse, a doação vai ser oficializada numa cerimónia, na sexta-feira, por ocasião da abertura da nova exposição de Graça Morais, com o título “Inquietações”, a primeira da artista desde o início da pandemia.

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A pintora explicou à Lusa que, na doação, estão “obras de diferentes fases” da carreira e adiantou que no próximo ano pretende “fazer uma doação maior”.

“Porque eu acho que tenho essa obrigação de deixar um legado importante aqui à região onde eu nasci e ao meu país”, declarou.

Graça Morais foi convidada pela Câmara de Bragança, a proprietária do Centro de Arte Contemporânea, para ser a mentora deste espaço inaugurado em 2008.

O equipamento cultural está instalado num edifício histórico, no centro de Bragança, remodelado pelo arquiteto Souto de Moura, e tornou-se num espaço que dá acesso, nesta região, a arte antes apenas acessível nas grandes cidades.

O Centro tem sempre uma exposição de Graça Morais em simultâneo com a de outro artista, e promove atividades, nomeadamente com os mais novos, para despertar para as artes.

Quando assinalou uma década, em 2018, o Centro de Arte Contemporânea de Bragança fez uma retrospetiva de todas as exposições individuais que por ali passaram de artistas como Paula Rego, Júlio Pomar, Ana Vieira, Alberto Carneiro, Pedro Calapez e Julião Sarmento, entre outros.

Nova obra “feita em carne viva”

Graça Morais transformou “o medo, a angústia e a solidão”, do último ano e meio, em arte que vai mostrar na primeira exposição de inéditos depois da pandemia, no Centro de Arte Contemporânea de Bragança.

“Inquietações” é o tema que escolheu para a exposição com 52 pinturas e uma instalação, que abre ao público na sexta-feira, e pode ser visitada até 23 de janeiro, no centro de arte com o nome da pintora transmontana.

“E eu gostava que esta exposição fosse vista como se lê um livro de um filosofo, de um grande escritor, como um filme, e que marca uma época, um período em que muita gente sofreu imenso, porque [as pessoas] perderam os seus entes queridos e nem se puderam despedir deles”, partilhou com a Lusa.

A artista está a acompanhar, em Bragança, a preparação da mostra desta série de trabalhos que começou a pintar em março de 2020, logo que foi decretado o primeiro confinamento.

Graça Morais contou à Lusa que, em vez de ficar fechada em casa, resolveu fazer um ‘autoconfinamento’ no estúdio que tem em Lisboa, sempre rodeada de jornais, que são também uma das novidades da nova exposição.

“Esta obra foi feita em carne viva”, desabafou, pois pelo meio teve problemas de saúde, foi operada aos olhos e ao coração.

Foi através das preocupações pessoais, dos próprios medos e das notícias que “anunciavam sempre qualquer coisa de ameaçadora que estava a tocar as pessoas e o Mundo”, não só a pandemia, como o terrorismo, as catástrofes, as injustiças perante os migrantes, que começou a fazer estas obras.

“Estas obras nasceram de uma urgência que eu sentia em fugir ao medo, em fugir à doença, em fugir de facto à ameaça. E recriei outro mundo, mas que tem a ver, sobretudo com pessoas”, concretizou.

O olhar das pessoas sobressai nos novos quadros, mas sem as máscaras que Graça Morais está “farta de ver”, embora continue a usar, porque “as pessoas deixaram de ter rosto, só se veem os olhos”.

“Nós começamos a dialogar com as pessoas através do olhar, e as pessoas anónimas com quem eu me cruzava na rua, a maioria dos olhares que eu via na rua, eram de desconfiança, de receio, de medo, raramente encontrava olhares que nos trouxessem paz”, observou.

Esses olhares estão presentes nos novos quadros, onde continuam a surgir as metamorfoses de pessoas e animais características da artista, mas também a influência das imagens pintadas há séculos na Capela Sistina, por Michelangelo, e que se repetem no mundo atual.

“Eu tenho no meu estúdio três grandes volumes sobre o restauro da Capela Sistina do Michelangelo, e aqueles três volumes alimentaram-me o meu espírito; ao mesmo tempo eu sentia que muitas daquelas figuras eram as mesmas que eu encontrava nos jornais”, explicou.

Outra influência para esta série surgiu nos jornais e revistas que a pintora continua a comprar em papel, porque gosta de sentir o cheiro e o tato.

As notícias e imagens que lê e vê criam na pintora “um imaginário do mundo”, que recria a partir da cultura como artista.

Por isso, lembrou-se de “mostrar ao público a importância dos jornais” com uma instalação que vai ocupar uma sala do Centro de Arte Contemporânea, que terá as paredes forradas com jornais e, sobre eles, pinturas e desenhos em papel vegetal sobre a temática da exposição.

“Achei que nesta exposição eu devia guardar uma sala só para colar folhas de notícias que eu fui lendo ao longo deste ano e meio”, salientou, confessando que é pouco adepta da falta de contacto físico e da pressão das redes sociais e da Internet.

Esta sala é ao mesmo tempo uma recordação de infância de Graça Morais que, na aldeia transmontana do Vieiro (Vila Flor), onde mantém um ‘atelier’, via as mulheres, por altura das limpezas da Páscoa, a lavaram as paredes das cozinhas tisnadas pelo fumo das lareiras, e a forrarem-nas com jornais colados com cola de farelo.

“E eu recordo que, miúda, achava muita graça aos jornais e gostava de ler as notícias, só que algumas não as conseguia ler, porque estavam postos ao contrário, pois as mulheres não sabiam ler e colavam os jornais conforme lhes dava mais jeito”, contou.

A exposição “Inquietações” tem curadoria de Joana Baião e Jorge da Costa, e fica patente, no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, em Bragança, em simultâneo com a exposição “Beyond, Between, Here and There”, da artista polaca Magdalena Kleszynska.

“Há falsos mecenas que compram arte com dinheiro que nos pertence”

Em entrevista à Lusa, a artista disse que gostava de ver em Portugal o exemplo de outros países onde os ricos financiam as artes, mas considera que o que se vê é “infelizmente a quantidade de bandidos, que não têm outro termo, que têm roubado o país e que não criam riqueza, só acumulam para eles”.

No entender da pintora, o que Portugal tem é “falsos mecenas que compram arte com dinheiro que nos pertence”, o que a leva a concluir que “muitos dos problemas do nosso mundo” resultam de as pessoas se terem tornado “demasiado ambiciosas”.

“Ser rico não é defeito, agora estes bandidos que enriqueceram e que colocaram o dinheiro não sei aonde e roubaram o país e roubam-nos a nós todos os dias, que temos de pagar estes impostos violentos, isso só mostra que há pessoas que perderam a cabeça”, acrescentou.

Graça Morais aponta exceções como o empresário Rui Nabeiro, que disse admirar “imenso, porque é um homem que nasceu pobre, foi enriquecendo, mas criou riqueza para a comunidade e para o país”.

No mecenato ressalvou também o exemplo de alguns bancos, mas reiterou que a situação portuguesa está longe do que “se passa, por exemplo, em França e na América, onde há pessoas que sentem que têm que oferecer à comunidade”.

Entendem, como destacou, que “parte da riqueza deve ser para oferecer à comunidade e essa oferta muitas vezes é feita para ajudar as pessoas mais pobres, mas também para a arte, porque sabem a importância da arte no mundo porque a arte é que fica”.

“Nós não temos mecenas em Portugal”, insistiu, lamentando também que simultaneamente o país tenha “um Ministério da Cultura com um investimento também muito reduzido em arte”.