Gritos, palmas, lágrimas de emoção. Assim que esta quarta-feira, ao final do dia, vislumbraram Farkhunda Muhtaj por entre a multidão de jornalistas reunida junto à Torre de Belém, as jogadoras das camadas jovens da seleção afegã de futebol, refugiadas em Portugal há menos de duas semanas, precipitaram-se para os braços da capitã da seleção principal — para lá de um ídolo, uma das principais responsáveis pela sua saída do país.

Durante largos minutos, Farkhunda, que vive no Canadá, abraçou uma a uma todas as raparigas, que já conhecia das sessões de zoom que, ao longo do mês que a “Missão Bolas de Futebol” demorou a ser concretizada com sucesso, manteve diariamente, para as animar.

Terão sido longas semanas de ansiedade e terror, que passaram escondidas num hotel em Mazar-i Sharif, no norte do país, numa tentativa de escapar aos talibãs, que a 15 de agosto tomaram Cabul, fizeram cair todo o Afeganistão e, com ele, os direitos das raparigas e mulheres a, entre outras coisas, ir à escola e praticar desporto.

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Através da internet, a partir do Canadá, onde trabalha como professora, para além de tentar acalmá-las com sessões de ioga e de ginástica, Farkhunda entreteve as raparigas com trabalhos de casa e até chegou a pedir-lhes que escrevessem autobiografias. Nunca lhes revelou qualquer detalhe sobre a missão de resgate em curso, organizada por uma organização não governamental americana com sede em Dallas, no Texas, nem mesmo quando as viu a soçobrar e ceder à depressão. Pediu-lhes apenas que confiassem “cegamente” no que aí vinha. No final, o que veio foi o asilo na “pátria de Cristiano Ronaldo”, Portugal.

Deu voz às mulheres do Afeganistão através do futebol, agora pede-lhes que se “escondam”

Agora, que o pior já passou e estão em segurança, disse-lhes Farkhunda Muhtaj esta quarta-feira em Lisboa, é hora de voltar aos treinos, que, primeiro a Covid-19, e depois os talibãs, as impediram de frequentar no último ano e meio. Esta quinta-feira, anunciou, para ouvir um estrondoso aplauso de volta, vão regressar aos relvados — e a capitã da seleção nacional, acabada de chegar do Canadá, também vai calçar as chuteiras.

Para quem está de fora, fica a ideia de que só ficariam mais felizes numa de duas situações: se Cristiano Ronaldo, o nome que todas pronunciam com um sorriso, também fosse jogar ou se, em vez de no dia seguinte, o treino fosse naquele mesmo instante, naquele mesmo local.

Na verdade, o objetivo inicial era exatamente esse, que as raparigas estivessem a treinar e que a capitã da seleção principal chegasse para as surpreender, explicou ao Observador a responsável que está a tratar da comunicação da missão de resgate. “Mas entretanto o Governo envolveu-se e disse que elas tinham de fazer exames médicos antes de jogarem, por isso passaram o dia de hoje a fazer testes”, revelou a ex-jornalista americana, que na terça-feira voou de propósito desde o Texas, para esta quarta estar em Lisboa.

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Agora que estão em segurança, as raparigas, que chegaram à zona da Torre de Belém na companhia das mães, dos pais, dos irmãos e das irmãs, que fugiram do Afeganistão com elas, só querem começar de novo. Ensaiam as palavras que já aprenderam em português — “olá”, “bom dia” e “obrigada” —, agradecem a hospitalidade e lamentam os familiares e amigos que deixaram para trás. Querem ajudar quem ficou, falar sobre o que se está a passar no Afeganistão, sensibilizar outros governos para que sigam o “exemplo de Portugal” e resgatem mais e mais raparigas e mulheres neste momento em risco no país onde nasceram. E, depois, querem também jogar futebol.

“Embarcámos nesta missão para assegurar que estas raparigas podem fazer o desporto que adoram, que é o futebol. Passámos por tanto, vimos tantas barreiras e desafios. O ambiente e o cenário no Afeganistão estavam constantemente a mudar durante esta missão, mas mantivemo-nos determinados e no fim, depois de tantas missões mal sucedidas, tivemos sucesso. Estas raparigas foram resilientes e também ajudaram a que isso acontecesse”, congratula-se Farkhunda Muhtaj perante os jornalistas. Ao perguntar às raparigas o que significa para elas o futebol, recebe a resposta mais curta de todas, gritada, em uníssono: “Futebol é vida, futebol é paixão”.

Missão retirou 80 pessoas do Afeganistão numa “janela de três horas”

Depois de várias falsas partidas, no domingo, dia 19 de setembro, a “Operação Bolas de Futebol” arrancou finalmente. As 26 jogadoras das camadas jovens da seleção de futebol do Afeganistão, entre os 14 e os 19 anos, receberam um telefonema logo de manhã, a avisar que o resgate ia acontecer nesse mesmo dia. Os autocarros que iam levá-las ao aeroporto, juntamente com as respetivas famílias, já estavam a caminho para as apanhar. Por razões de segurança, o destino final é que tinha de permanecer secreto.

Sem saberem em que parte do mundo iam desembarcar, futebolistas e familiares subiram rapidamente para o avião — ao todo foram 80 as pessoas resgatadas, várias crianças incluídas. “Tudo isto tinha de acontecer muito, muito rapidamente. O nosso contacto no terreno disse-nos que tínhamos uma janela de cerca de três horas. O tempo era muito importante”, contaria entretanto à Associated Press Nic McKinley,  o veterano da Força Aérea americana e ex-agente especial da CIA que em 2014 fundou a DeliverFund, uma ONG que combate o tráfico humano e que no mês que passou já conseguiu resgatar e realojar 50 famílias afegãs.

Na altura nenhum deles tinha como saber, mas dessa vez tudo iria correr bem — ao contrário do que tinha acontecido 21 dias antes, quando a operação de resgate em curso teve de ser abortada porque um bombista suicida ligado ao Daesh se fez explodir junto ao aeroporto de Cabul, causando a morte a 169 afegãos e 13 militares americanos. Ainda fizeram uma escala pelo meio. Depois, quando as portas do avião, novamente em terra, se voltaram a abrir, já de noite, o grupo de refugiados estava em Portugal.

“O mundo juntou-se para ajudar estas raparigas e as suas famílias”, já tinha dito à AP Robert McCreary, ex-funcionário da administração Bush que fez a ponte entre as forças especiais no terreno afegão, os talibãs e as autoridades portuguesas, que concederam asilo às 80 pessoas que a “Operação Bolas de Futebol” salvou. “Estas raparigas são verdadeiramente um símbolo de luz para o mundo e para a humanidade”.

Até ao momento, Portugal acolheu 178 refugiados afegãos. À luz da nova lei talibã em vigor naquele país, estas 26 raparigas eram duplamente transgressoras, não apenas por praticarem desporto mas também por serem, todas elas, defensoras ativas dos direitos femininos na comunidade. Agora, já atestou o Governo português em comunicado, vão ser distribuídas, com as famílias, por várias regiões do país.