“Obrigada, Internet”, apetece dizer. De que outra forma poderíamos ouvir uma conversa sobre língua portuguesa entre um rapper de Chelas e um professor da Universidade Nova de Lisboa? Mais: gravada na Biblioteca de Marvila, em Lisboa; emitida num canal de YouTube com quase 90 mil subscritores chamado TV Chelas e também no Spotify; e com comentários do género, “Acabei o 12.º e as únicas cenas que aprendi foram alguns recursos estilísticos, vamos lá ver se é agora que aprendo alguma coisa”.
Tema do episódio em causa? “O Prefixo de Camões”. O linguista explica que é uma “prótese”, referindo-se ao “a” de “alevantar” em “valor mais alto se alevanta”, um dos versos da terceira estrofe do Canto I de Os Lusíadas. O poeta do hip hop dá outro exemplo: “amostrá-lo”, que incluiu na letra de “Vale do Silêncio” e foi considerado “uma labreguice.” “Isso é preconceito social”, responde o académico. “Simplesmente, é mais popular.” “Grammar Shaming”, contrapõe o outro: quando as pessoas tentam mostrar-se superiores pela forma como falam.
Estreado no final de Setembro, “Assim ou Assado” é o formato descontraído com que o rapper Sam The Kid e o tradutor e docente universitário Marco Neves se propõem a desmistificar preconceitos e debater curiosidades em torno da língua portuguesa. Se o primeiro é conhecido por já clássicos do hip hop português como “Poetas do Karaoke”, onde defende o seu “idioma exploração” e assume “eu escrevo como falo, como sonho e como penso”, o segundo é autor de vários livros sobre a língua portuguesa, incluindo “História do Português desde o Big Bang” e “Gramática para Todos – o Português na Ponta da Língua.” Do encontro entre a rua e a academia, dois mundos distintos mas não opostos, nascem a conversa e também o debate.
[veja aqui o mais recente episódio de “Assim ou Assado”, através do Youtube:]
Entre os especialistas da novíssima teoria do podcast, há duas características fundamentais, apontadas como comuns a todos os casos de sucesso: “nicho” e “paixão”. Para completar o três em linha, a este “Assim ou Assado” só lhe falta a regularidade. Há neste momento três episódios disponíveis, o último de há duas semanas, mas nenhuma ideia sobre quando virá o próximo.
Se dissermos que os temas vão das já referidas “próteses” linguísticas a coisas como a “derivação por conversão” ou a “hipercorreção”, talvez o interesse suscitado seja nulo, mas basta concretizar em casos reais para a coisa mudar de figura. Em cada programa, logo depois das apresentações (“O meu nome é Samuel Mira. Sou um curioso da língua portuguesa. Também gosto de escrever”) o rapper começa a disparar – e não pára.
[ouça “Assim ou Assado” através do Spotify:]
São inquietações quotidianas, atos de revolta e referências da Internet. Quem assista aos seus lives enciclopédicos sobre música no Instagram, não se surpreenderá com o grau de pormenor e obsessão. “Recentemente estava no Twitter a ver alguém a fazer grammar shaming, porque Miguel Sousa Tavares usa a expressão ‘ter aceite’ que devia ser ‘ter aceitado’”, começa. “O que tens a dizer sobre isto?” Ao que se segue uma longa discussão sobre esta dúvida comum e as diferentes formas de particípio passado, sintetizada sob o título, “A Abundância da Aceitação.”
Qualquer pessoa que tenha andado na escola se lembrará do aluno insistente e argumentativo, sempre de braço no ar e um “porquê?” na ponta da língua. Samuel Mira junta um “porque não?” ao retrato e uma série de palavras de ordem, incluindo, “o povo é quem mais ordena.” Na mesma ordem de ideias, Marco Neves será o professor paciente e pedagógico. A língua, defendem os dois, é uma entidade viva e dinâmica, um espaço de liberdade e flexibilidade. As divergências entre os dois – claríssimas e divertidas – surgirão na relação com a autoridade. Como quando numa reflexão sobre os plurais, em particular da palavra “refrão” (“refrães” ou “refrãos”, mas não “refrões”), Neves comenta que a língua nos leva por vezes por caminhos inesperados, mas que a mudança há-de chegar, e Mira contrapõe, “Porque é que temos de ficar à espera do dicionário?” Por outras palavras, porque é que tem de ser assim, se pode ser assado?
Onde: Youtube e Spotify
Para quem: Gente que se pergunta se devia ter pago ou pagado