“Então e Miguel Esteves Cardoso não entra?” terá sido a pergunta mais feita quando há poucos dias se soube que o icónico programa satírico da SIC dos anos 1990, “A Noite da Má Língua”, ia voltar, mas em podcast. MEC não entra, não foi referido e, por muito que custe sublinhá-lo, passadas as apresentações do episódio de estreia (gravado de forma excecional num domingo por causa das eleições autárquicas), não se fez notar pela ausência.

A moderar desde 1994, Júlia Pinheiro começou por comparar o país de então com o de hoje: “António Costa ainda não tinha descoberto um novo significado para a palavra ‘geringonça’. (…) Marques Mendes só falava no ‘Contra-Informação’”. Seguiu-se o escritor e professor universitário Rui Zink que, num aparente improviso, fez o mesmo em relação aos companheiros de painel: Rita Blanco, antes “aprendiz de atriz”, hoje “monumento nacional”; Manuel Serrão, ex-“reacionário do Norte”, agora um “tipo moderado do Centro”; Júlia Pinheiro, antiga “operária da comunicação”, atual “gestora de uma empresa de sondagens”. Um grupo que, nas palavras da anfitriã, se volta a reunir “com o intuito de endireitar o país”. À imagem do que aconteceu no passado, faltou acrescentar.

“A Noite da Má Língua” fez parte da grelha de uma então muito jovem e irreverente Sociedade Independente de Comunicação (SIC) entre 1994 e 1997. Cavaco Silva e depois António Guterres ocupavam o cargo de primeiro-ministro. Na Presidência da República, Jorge Sampaio sucedia em 1996 a Mário Soares. À mesa da estação de Carnaxide (“carnasic”, como se achava divertido dizer na altura), um grupo de provocadores reunia-se para analisar os factos políticos da semana – ou, simplesmente, para dizer mal. No programa “Herman Zap” da RTP, Herman José encenaria uma rábula intitulada “Noite dos Maus Fígados.” Como diriam os ingleses, tudo é justo no amor e na guerra (de audiências): o próprio Herman seria convidado especial do talk-show do canal concorrente.

Na irrepetível euforia dos anos 1990, “A Noite da Má Língua” destacava-se pelo carisma dos comentadores, num registo entre o anárquico e o contumaz. Depois de um entra e sai de gente de língua afiada, de que chegaram a fazer parte os jornalistas Helena Sanches Osório, Constança Cunha e Sá e Fernando Alves, o poeta Alberto Pimenta, a atriz Graça Lobo e, de forma mais duradoura, o político e comentador Luís Coimbra, a quadra cristalizou-se com MEC, Serrão, Zink e Blanco – todos na casa dos 30 anos; Esteves Cardoso (o mais consagrado) já a entrar nos 40. Júlia Pinheiro segurava o barco, muitas vezes a custo. A acutilância do jornalista Vítor Moura Pinto, sintetizada em rubricas como “Porcos no Espaço”, “Sic Transit Gloria Mundi” (Assim vão as glórias do mundo) e “É Portugal Ninguém Leva a Mal”, encerrava o esquadrão de ataque. Sempre sem medo, censura ou moderação.

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[um excerto da “Noite da Má Língua” nos anos 90:]

Os regressos são uma coisa complicada. Para começar, há sempre a tentação de traçar paralelos. Depois, não é fácil perceber o verdadeiro propósito de voltar – e o seu real valor. Por fim, o risco derradeiro de insistir num sítio onde se foi feliz: ficar tudo muito aquém do que nos lembrávamos, sejamos nós o público – ou os protagonistas.

Se o facto de esta reencarnação de “A Noite da Má Língua” surgir em podcast protege os intervenientes de comparações físicas (embora a maior parte apareça com regularidade na televisão), os próprios divertem-se a fazê-lo. “Estamos muito mais bonitos”, resume Júlia Pinheiro, dando espaço à réplica de Rita Blanco, uma entre várias capazes de nos levar às lágrimas, tanto pelo teor como pelo timing, “Aconteceram aqui coisas que não aconteceram em mais parte nenhuma do mundo: há aqui pessoas, e que são homens – e estão grávidos!” É a vez de Zink se indignar, “disseram que não se falava de vida privada. Ainda vou à ecografia.”

Todos eles em grande forma – “Estamos mais inteligentes, mais experientes, mais acutilantes e mais cínicos. Não estamos, como já perceberam, mais modestos”, adverte Pinheiro –, os quatro protagonistas começam por abordar as eleições autárquicas, de que na altura da gravação antecipada ainda não havia resultados definitivos. (Teria sido mais interessante ouvi-los na segunda-feira, dia oficial de gravação do programa, já com Medina derrotado em Lisboa, por exemplo). Como se nunca tivéssemos saído dos anos 1990, Santana Lopes (que ganhou na Figueira da Foz) foi uma das figuras da noite. Isaltino Morais (de novo vencedor em Oeiras), também. Já bem enterrados em 2021, ainda houve tempo para a candidata do PSD à câmara da Amadora, Susana Garcia. “Essa não é a da televisão?”, pergunta Rita Blanco. “Era”, atalha Pinheiro. De novo Blanco: “Isto vai para aqui uma grande promiscuidade….”

Seguem-se uma série de temas da semana anterior, da assunção da homossexualidade do social-democrata Paulo Rangel às vindimas naturistas em Grândola, passando pelos vídeos em que um professor do secundário da Póvoa de Varzim se mostrou nu (“O que é espantoso nos professores de liceu é não enlouquecerem”, comenta Zink. “Este homem é o único professor normal em Portugal.”). A acabar, os negacionistas da pandemia de Covid-19, em mais um tema que sintetiza aqueles que terão sido os pontos fundamentais deste primeiro episódio (embora o título oficial seja, “Tudo nu, mas podia ter sido pior”): o impacto das redes sociais no debate público (“O elogio da mediocridade”, diz Blanco) e a normalização da ‘loucura’ (“Eu quando te conheci…”, avança Serrão, numa picardia com a actriz que se mantém desde os anos 90, “Tu és um bocado amalucada, mas para mim eras a minoria. Eu hoje já tenho dúvidas.”)

[ouça “A Noite da Má Língua” através do Spotify:]

Anunciar que “A Noite da Má Língua” está de volta, como se lê na apresentação do podcast, porque “as novas gerações” o exigiram, é obviamente frescura. A razão verdadeira andará mais próxima do “porque nos apeteceu”. Agora, depois deste primeiro episódio, talvez haja espaço para concordar com o outro argumento: que “o país precisa” deste regresso – mas só agora ficou a sabê-lo. Não apenas pela forma como eleva a arte do disparate (de que nos últimos anos tem havido uma apropriação involuntária, mas não uma verdadeira apreciação), mas sobretudo por nos confrontar com uma série de qualidades pouco óbvias que, sem darmos por isso, desapareceram do comentário político e até do espaço mediático. Da independência quase libertária à dessacralização sem limites. Da refrescante espontaneidade ao inesperado bom-senso. Estará o espaço público generalista a ficar assim tão cinzento e controlado?

Não deixa de ser sintomático que o programa regresse num formato low-cost como o podcast, sem qualquer outro elemento para além da música do genérico e as vozes e opiniões dos quatro. Explica Manuel Serrão que o grupo não pode ir para a televisão porque, ao contrário da maioria atual, de “especialistas em tudo” eles são “especialistas em nada”. Blanco aproveita, “Não poderíamos estar na televisão porque os especialistas em geral são de um partido. Que é uma coisa muito ética.” É a vez de Zink lançar a sua farpa, “Eles têm de ter jeito para alguma coisa”. Pinheiro remata: “Mas alguns também não têm jeito nenhum para o comentário.”

Seja à distância de 25 anos, fosse passadas 24 horas, é difícil lembrarmo-nos de algum argumento esgrimido em alguma das “Noites da Má Língua” da década de 1990. O objetivo ali era mais agitar as águas do que desenvolver um pensamento. Sabemos que houve gente muito poderosa muito arreliada com o que ali se dizia. Todos nos rimos muito e muitas vezes. E nunca conseguiremos “desver” aquele tique que fazia com que Miguel Esteves Cardoso pusesse muitas vezes a língua de fora. Fora o acessório, ficava o fundamental: o papel de contrapoder.

Explicam-nos a história e a literatura que o bobo da corte e as crianças eram os únicos que diziam que o rei ia nu, porque não era suposto levá-los a sério. No final desta estreia, logo depois de Rita Blanco se queixar dos perdigotos de Manuel Serrão, numa referência ao coronavírus, Rui Zink vira-se para Júlia Pinheiro e comenta, “Tinhas dito que este podcast era mais casto, mas não: é igual ao que era há 25 anos.” E é; não igual, mas parecido – e muito bom.

O prémio de A Noite da Má Língua foi atribuído ao fundador da Assistência Médica Internacional Fernando Nobre, “rei dos negacionistas”.

Para quem: Vive em Portugal e não leva a mal
Onde: Site da SIC, do Expresso e Spotify