Para os que programam os concertos de dezembro, é difícil escolher que tipo de música querem oferecer ao público no concerto que antecede o Natal. Quando optam por um carácter mais popular ou familiar, são geralmente concertos dedicados à música tradicional, às fanfarras festivas, ou aos filmes e animações natalícias para crianças; com grupos corais ouvimos cânticos de várias proveniências, ou até algo mais sério como uma missa ou o Te Deum de W.A. Mozart; as orquestras que se mantêm na programação mais erudita geralmente acabam por tocar uma mistura de peças que evocam o Natal, como o Quebra Nozes de P.Y. Tchaikovsky, Seligh Ride de F. Delius, a suite O Tenente Kijé de S. Prokofiev ou até as Quatro Estações de A. Vivaldi. No entanto, nas grandes produções orquestrais e corais, as duas peças mais tocadas são o Messias de G.F. Handel e a Oratória de Natal de J.S. Bach, sendo que a segunda é sem dúvida a grande vencedora.
O Messias de Handel é na realidade uma oratória escrita para o tempo da Páscoa. Os seus textos são adaptados da Bíblia, mas sem continuidade textual. Tornou-se uma peça muito popular por ser confortável de executar, e por não ter uma continuidade dramática rígida, permitindo rearranjar a obra sem que a força estrutural se perca. A sua primeira parte, de três, conta a história do nascimento de Jesus Cristo, e, por isso, facilmente ganhou um lugar justificado como peça tradicional de Natal.
Já a Oratória de Natal (Weihnachts-Oratorium) de Bach, número de catálogo BWV 248, foi escrita especificamente para o Natal. O seu texto é também adaptado da Bíblia, mas segue de forma bastante linear parte do segundo capítulo do evangelho de S. Lucas – O nascimento de Cristo – e parte do segundo capítulo do evangelho de S. Mateus – A visita dos Magos.
Bach foi o Kantor (diretor musical) da igreja de S. Tomás em Leipzig desde 1723 até à sua morte em 1750. De entre as várias funções que desempenhava como Kantor, Bach tinha de compor para os serviços dominicais para as duas maiores igrejas das quatro onde prestava serviço – a Igreja de S. Tomás e a Igreja de S. Nicolau. Para as três grandes festas religiosas, Natal, Páscoa e Pentecostes, era esperado que escrevesse e executasse a música (neste caso, dirigisse o coro) para as celebrações integrais dessas Festas. O tempo de Natal prolonga-se desde o dia de Natal até ao domingo a seguir à Festa da Epifania (dia 6 de janeiro). Em 1734-35, quando Bach escreveu a Oratória de Natal, houve seis dias de celebrações: três dias consecutivos a começar no dia 25 de dezembro, o dia de ano novo, o domingo entre o dia de ano novo e a Festa da Epifania (que, por causa mudança dos dias semanais de um ano para o outro, não existe em todos os anos) e, finalmente, o dia da Festa da Epifania.
[a “Oratória de Natal” de Bach, dirigida por John Eliot Gardiner e a sua orquestra de câmara, a English Baroque Soloists:]
Bach não escreveu uma Oratória para cada celebração, porque esse era um género musical grande demais para um só serviço religioso. Assim sendo, escreveu 6 Cantatas, um género semelhante mas mais modesto e curto, para cada dia do tempo de Natal:
BWV 248 I – “Jauchzet, frohlocket! Auf, preiset die Tage”, para a solenidade do Dia de Natal
BWV 248 II – “Und es waren Hirten in derselben Gegend “, para o segundo dia de Natal
BWV 248 III – “Herrscher des Himmels, erhöre das Lallen”, para o terceiro dia de Natal
BWV 248 IV – “Fallt mit Danken, fallt mit Loben”, para a Festa da Circuncisão, que deveria ser cantada na celebração do Ano Novo
BWV 248 V – “Ehre sei dir, Gott, gesungen”, para o domingo a seguir ao Ano Novo
BWV 248 VI – “Herr, wenn die stolzen Feinde schnauben”, para a Festa da Epifania.
Bach escreveu estas 6 Cantatas com uma ideia musical única e por isso é que assim as agrupou sob o mesmo nome “Weihnachts-Oratorium”. Geralmente assumimos que as quase duas horas e meia de música são de facto uma só obra, e estamos habituados a ouvi-la do princípio ao fim. Mas, sabendo que foram escritas para dias específicos das celebrações de Natal, percebemos que cada uma destas Cantatas tem uma função definida, tanto nos festejos litúrgicos como no conteúdo dramático e musical. Ainda para mais, nem todos os fiéis assíduos de Leipzig puderam ouvir a Oratória completa nesse Natal. Bach dividia os seus serviços pelas Igrejas de S. Tomás e de S. Nicolau, e prestava os seus serviços musicais semanais alternadamente entre essas duas igrejas. Nos dias de Solenidade e nos dias maiores das Festas, havia dois serviços diários (de manhã e à tarde), o que permitia a Bach dividir-se pelas duas paróquias e executar a Cantata do dia em cada uma. Mas nos dias menores, só havia um serviço – em 1734 aconteceu no terceiro dia de Natal e no Domingo a seguir ao Ano Novo. Assim sendo, só houve uma atuação “completa” da Oratória na Igreja se S. Nicolau.
A Oratória de Natal é uma obra bastante longa e complexa, porém Bach foi muito engenhoso na sua composição. Em primeiro lugar, contornou o problema da longa duração de uma Oratória para os serviços religiosos dividindo-a em 6 Cantatas mais curtas. Em segundo lugar, em vez de usar os textos que iam ser lidos no evangelho diário, como seria de esperar, usou secções mais seguidas dos evangelhos para contar a história da natividade de forma ininterrupta e para lhe dar um maior sentido de continuidade dramática. Por último, reutilizou muita música de outras composições (cantatas) de anos anteriores nesta Oratória, compondo de raiz apenas os recitativos e poucos números solísticos. Estas três caraterísticas da composição de Bach contribuem para a coerência e coesão estrutural da Oratória.
Escritas para servir cada dia das celebrações de Natal, as cantatas da Oratória valem musicalmente por si próprias. Cada uma trata de uma secção definida da história da Natividade: O nascimento de Jesus; O anúncio aos pastores; A adoração dos pastores; A circuncisão de Jesus; A viagem dos Reis Magos; A adoração dos Reis Magos.
A instrumentação integral da Oratória conta com 4 solistas, coro a 4 vozes, 2 flautas transversais, 2 oboés, 2 oboés d’amore, 2 oboés da caccia, 2 trompas, 3 trompetes, tímpanos, violinos I e II, violas e contínuo (que usualmente conta com fagote, violoncelo, violone e órgão). Os meios de que Bach dispunha para cada dia das celebrações variavam, e por isso a instrumentação é diferente para cada Cantata. Assim, adaptou o número de músicos que podia usar de forma engenhosa para criar o ambiente musical mais apropriado ao tema que apresentava. Por exemplo, a primeira, terceira e última cantatas usam os três trompetes — a sua sonoridade brilhante e marcial contribui para o sentido de festejo e exuberância dos acontecimentos. Já a cantata do segundo dia, que apresenta os pastores, conta com todos os instrumentos de sopro de madeira para criar uma atmosfera pastoral.
A quarta Cantata é a única que tem trompas — essa mudança de instrumentação para um registo mais grave com um timbre mais suave contribui para uma atmosfera mais íntima, apropriada para os textos da circuncisão e nomeação de Jesus.
A técnica de “reciclagem” de outras composições chama-se Paródia Musical, e a Oratória de Natal é um dos maiores e mais bem-sucedidos exemplos dessa técnica. Para além de Bach se autorreferenciar com outras cantatas, essas contêm, por sua vez, textos e melodias corais já conhecidos e estabelecidos por outros compositores. O uso da paródia musical serviu um propósito muito prático de economizar as composições que Bach tinha de fazer para as celebrações de Natal, bem como de agradar aos fiéis de Leipzig ao utilizar hinos fáceis de reconhecer, e até mesmo conferir um maior sentido de unidade à Oratória por usar corais de algumas cantatas originais em mais do que uma cantata da Oratória. Por exemplo, no coral nº. 5 da primeira cantata,, “Wie soll ich dich empfangen” (Como devo recebê-Lo), Bach usa um verso de um hino de advento escrito Paul Gerhardt, que emparelhou com uma melodia do compositor e organista Hans Leo Hassler. Esta melodia é ouvida novamente no último coral da última cantata, “Nun seid ihr wohl gerochen” agora com a letra de Georg Werner.
Quer seja ouvida por partes, quer na íntegra, não há dúvida nenhuma da mestria de Bach em adaptar a sua música para ocasiões festivas e em musicar os textos bíblicos de forma coerente. Hoje em dia é capaz de ser a peça mais programada nos concertos de Natal.