Passou a noite. O dia acorda e o tempo entre ontem e as noites passadas a jantar, a conversar, a beber, a dançar, não é nenhum. Mas antes de descrever os míticos jantares-tertúlia decorridos no restaurante Mymosa, na Rua da Horta Seca, na porta ao lado da editora Abysmo, vou falar-vos dos MFSB.

Os MSFB, abreviatura de “Mother, Father, Sister and Brother” – e isto é importante –, foram um grupo de músicos que encarnaram o soul produzido em Filadélfia nos anos 70. Uma das músicas mais emblemáticas chama-se ‘Sexy’ e é ver na Internet o vídeo em jeito de teledisco com os pares de bailarinos a dançar o tema num concurso de televisão. É só sexyness, só coolness, todo o groove do mundo na área daquele palco.

Nas festas que aconteciam no bar do espaço de teatro A Barraca, em Santos, quer por motivo do lançamento de um livro quer por motivo algum – e aqui o nós era a malta que se juntava sempre em torno da Abysmo e dos seus eventos –, a dada altura, mais ao início da noite, eu punha a ‘Sexy’ a tocar e do bar saltava o João Paulo Cotrim para o meio da pista a dançar. A pista era toda dele. Era livre. Importava-se peva com o que achassem da sua performance e por isso mesmo dançava melhor do que ninguém.

O João Paulo Cotrim era sabedoria. Tinha uma cultura geral que ia da música à política, e tinha, principalmente, aquela calma subliminar a discutir assuntos de quem entende o que os outros – muitas vezes mais novos – dizem mas coloca em cima da mesa sempre uma perspectiva mais. Era inclusivo, no sentido bom do paternalismo. E é muito por isto que João Paulo Cotrim é reconhecido: o mentor, o promotor, o instigador de cruzamentos linguísticos e disciplinares, o descobridor de talentos, o fundador da Bedeteca de Lisboa, em 1996 – que permitiu dar visibilidade a tantos e tantos autores da chamada cultura visual urbana.

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Começou por ser jornalista, mas depressa o seu sentido de inquietude o levou a escrever histórias para livros, uns de BD outros de ilustração, ou argumentos para filmes animados. Escreveu livros para crianças. Trabalhou com ilustradores como João Fazenda, Miguel Rocha, Pedro Burgos ou André Letria. Quantos ilustradores não viram os seus trabalhos expostos nas paredes da galeria da Abysmo, uma cave de duas salas expositivas que tinha um corredor interior que dava depois para os escritórios: as aguarelas de André Carrilho, os desenhos editados também em livro de António Jorge Gonçalves aquando de uma experiência de internamento grave no hospital de São José, as colagens de sarcasmo pop de André da Loba. E editava: são da Abysmo praticamente todos os livros escritos por Valério Romão, alguns de Paulo José Miranda, Fernanda Botelho, António Cabrita, Luís Carmelo, António Araújo, Rita Taborda Duarte. Editava romance, editava ensaio, editava poesia.

“Por vezes, com sorriso malandro, brincavas que querias comer até te tornares incontornável. Já o eras há muito tempo”, escreveu André Carrilho ontem, quando se soube da sua morte. E João Fazenda: “se desenhar é olhar para o mundo, tu desenhaste sempre muito bem, com o teu olhar melancólico de puto reguila, tinhas mais curiosidade no teu olhar do que o tempo, sempre curto”.

Um dia contactava eu um artista de arte urbana bracarence para me falar sobre uma intervenção que fez nas paredes de um posto de transformação de luz em Padim da Graça, a propósito de um livro que estava a escrever sobre o projecto do qual a obra fazia parte, o Arte Pública, da Fundação EDP. Disse-me, com um esgar de timidez dissimulado pelo orgulho, que podia enviar-me um texto acerca do seu trabalho enquanto artista, escrito por um nome consagrado do mundo da ilustração e do desenho. Chama-se ‘A Olho Nu’ e João Paulo Cotrim escreveu-o para integrar a exposição de Sebastião Peixoto na Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, em 2020. E é verdadeiramente este o alcance do trabalho de João Paulo Cotrim, que estende a mão ao mais anónimo, ao mais longínquo, ao menos visível – pelo menos aos olhos dos nossos umbigos heliocêntricos.

Mas o João Paulo era também ironia – muita –, sarcasmo – muito –, através de um pequeno gesto de dança dizia “já foste!”. Do nada, soltava muitas vezes uma gargalhada e desconstruía qualquer seriedade desnecessária com uma palhaçada. Sabia manter o sarcasmo e a gentileza em gavetas separadas, para poder fazer sempre uso da segunda para socorrer a primeira.

O João Paulo não era sem defeitos. A liberdade de estar, de pensar, de não pensar e agir, de procrastinar, de lanchar pratinhos de queijo fatiado a meio da tarde regados a copos de tinto e dar o dia por encerrado, aproveitar e estender a conversa até à noite. O restaurante Mimosa, o “y” colocaram-no em sinestesia com o “y” da Abysmo, era uma cantina para os amigos que iam chegando e igualmente ficando. Os dois anos de pandemia destruíram tudo isso. Já nem a Mymosa existe.

Os jantares da Mymosa eram uns espontâneos e outros organizados – porque havia um lançamento, uma inauguração. As mesas eram rapidamente encostadas e formava-se uma longa tábua corrida. Falava-se de tudo. Falava-se de literatura, sim, falava-se do mundo e da arte. Mas também se via a bola. Eu sou portista e provocadora nata. Adorava falar de bola com o Cotrim, provocar o rugido do leão com as costumeiras alegações ao Natal e aos 18 anos sem saber o que é ganhar. O Cotrim ria – e rugia a imitar um leão – e contraargumentava com questões e factos bem mais certeiros para a conversa do que os meus. Sabíamos os dois perder, através daquele silêncio pós-derrota que asserta respeito pelo adversário.

A propósito da celebração da Abysmo 10 Anos, foi editado em livro o projecto de João Paulo Cotrim (texto) e João Vilhena (fotografia) intitulado Diário das Nuvens. A apresentação decorreu na edição deste ano do festival literário Folio, em Óbidos. Helena Ales Pereira, da comunicação da Penguin Random House Portugal, recorda de como o chamou à atenção por estar sem máscara e anulou a advertência com um “dá-me cá mas é um abraço”. Era isto, o João Paulo. À fotografia #61 do diário, umas nuvens cinzentas que deixam ver uma nesga de céu azul, para logo serem ombreadas por nuvens pretas, em cima, João Paulo escreve: “Chegados ao capítulo das perdições, sou tocado em grande medida pela cabeça. Causa-me estranheza que se torna calafrio antes do arrepio mal a vejo rolando calçada abaixo. Encontro singular consolo no reconhecimento: aquela é a minha cabeça perdida.”

A próxima festa no bar d’A Barraca vai ser para ti, João, cabeça sempre tão sagazmente perdida. O Valério passará a Tiro ao Álvaro do Adoniran Barbosa, que tu tanto adoras. Eu vou passar uma vez mais a Sexy dos MFSB. Mas vou também pôr uma de que gostas igualmente de dançar, de Sam & Dave, Hold on I’m comin’. Guarda-nos um lugarzinho aí nas nuvens, logo logo nos juntamos à festa.