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Arquitectos no pinhal, sem muros

Este artigo tem mais de 2 anos

"Casas de Férias" mostra a história de um bairro que se transformou num inesperado foco de experimentação e que nos dá um retrato de uma cultura e de uma época arquitectónicas de excepção.

Será surpresa para muitos (o signatário, incluído), mas a micro-história que este livro da Editorial Argumentum nos conta é das mais expressivas acerca do Portugal dos anos 1940-70. Dificilmente hoje jovens arquitectos em ascensão no serviço público ou privado teriam condições de conquistar territorialmente área tão privilegiadíssima para a construção de habitações sazonais como aquela que, como Pitum Keil Amaral nos explica com a sua congénita graça habitual, lhes caíram em sorte depois que Raul Tojal (1900-69) se viu comprometido “numa almoçarada no fim de semana passado” com a compra dum terreno “ali para as bandas da Praia das Maçãs” (p. 15). Não foi, todavia, por súbita inspiração etílica que nos anos 1940 começou a crescer junto duma aldeola saloia de nome Alto do Rodízio, próxima de Colares, aquele que ficaria localmente conhecido como “o Bairro dos Arquitectos”, com as suas pequenas casas de veraneio sob a copa alta de esguios pinus pinaster batidos pelo sol. Teresa Valsasinna Heitor aceita a existência duma “população citadina com alguma disponibilidade financeira que não se revia nos ambientes da Ericeira e da Costa do Sol” (p. 10). Cardim admite ser esse o despontar duma terceira fase de instalação de casas de veraneio por lisboetas (p. 54).

Os pioneiros do Bairro foram, além de Tojal: Adelino Nunes, Francisco Keil Amaral e João Guilherme Faria da Costa, dois recém-formados em “impressionante começo de carreira”, e o próprio Pitum — então com apenas 4 anos… —, pois a avô Guida Keil comprou uma parte do lote em seu nome, “talvez achando que eu algum dia teria a fatalidade de também ser arquitecto” (p. 16)… Depois vieram muitos outros, se não como proprietários-projectistas, como projectistas a serviço particulares ou de colegas de ofício, e a lista dos nomes impressiona, pela quantidade e pela qualidade: Francisco da Conceição Silva, Jorge Segurado, Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas, Frederico George, Artur Rosa, Victor Palla, Fernando Silva, Joaquim Bento de Almeida, Manuel Tainha e Manuel Costa Martins, Carlos Manuel Tojal, Justino Morais e Peres Fernandes, além de outros. Construtores civis não faltaram, entre os quais Carlos Rodrigues e Diamantino Tojal, os dois mais importantes da Grande Lisboa. Na casa do segundo, o suíço Fred Kardolfer pintou a fresco a parede da lareira (foto p. 11), com motivos alusivos à actividade do proprietário. Em 1955-56 Maria Keil pintaria azulejos para parede exterior da casa de Carlos Manuel Tojal no Pinhal da Nazaré (foto p. 81), onde também há colaborações plásticas um tanto ou quanto inesperadas, como as de José Escada, João da Câmara Leme e Costa Pinheiro. Numa casa projectada por Conceição Silva, em 1962, há trabalhos de Querubim Lapa, Sá Nogueira e Luís Ralha.

Essa concentração inédita viria a tornar-se “um conjunto arquitectónico único” (Cardim, p. 27), um inesperado foco de experimentação que nos dá todo um retrato de época que vale como “testemunho do melhor que essa cultura arquitectónica, que se movia nos círculos lisboetas, era capaz de fazer quando desafiada por um programa residencial que a retirava dos debates sobre as questões sociais, a habitação para o maior número, ou a precaridade do alojamento corrente” (Milheiro, p. 22). E a conclusão a retirar — e a reter — do estudo das 40 casas incluídas neste livro é que “o território da arquitectura das décadas de 1950 e seguintes foi muito mais ecléctico e diferenciado do que a cultura arquitectónica portuguesa tem vindo a admitir” (Milheiro, p. 22).

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Título: Casas de Férias. Arquitectura de veraneio entre Sintra e Colares
Autor: João Cardim
Textos: Teresa Valsassina Heitor, Pitum Keil Amaral e Ana Vaz Milheiro
Fotografia: Filipe Jorge
Editor: Argumentum
Páginas: 160

Ainda que a “história engraçada” (sic) da origem de tudo isto contada nas páginas iniciais por Pitum bastasse para desmitificar a filiação do Bairro a muitos séculos da vertente norte da Serra de Sintra enquanto lugar particularmente apreciado para casas de campo de elites socioeconómicas, ou à sua mitificada sacralidade como “um dos seus principais atractivos para as elites intelectuais” (Cardim, p. 33), a verdade é que — cumprindo requisitos académicos da tese de que Casas de Férias. Aquitectura de veraneio entre Sintra e Colares é a consequência, uma década depois, ou exacerbando em demasia o facto de ali ter nascido e vivido — o autor não se dispensou de percorrer uma milenar história de “fascínio duradouro” (p. 32), “sincretismo característico” (p. 33) e “intensa colonização” (p. 37), destacando, entre outros, a villa romana de Santo André de Almoçageme, a mais ocidental da Lusitania e do Império, o santuário do Alto da Vigia, junto à Praia Grande, ou a Quinta da Penha Verde, de D. João de Castro (1500-48), “autêntico cenáculo das artes e do pensamento” (p. 42), com a circular Ermida de Nossa Senhora do Monte, que se admite ter sido desenhada por Francisco de Holanda, entre outras villas, pertencentes e decoradas por estrangeiros, os palácios de Monserrate e Seteais e a Quinta do Ramalhão ou a da Regaleira.

Quando a vila velha de Sintra se tornou, segundo Eça de Queiroz, um “suplemento do Chiado” com ! e tudo, entre “chalés de confeitaria” (Nogueira, 1943), Alfredo Keil (1850-1907) e amigos optaram por um veraneio mais perto do mar, beneficiando da sua casa na Praia das Maçãs, a Villa Guida (1889-91), e da abertura da estrada entre Banzão e Azenhas do Mar em 1884-88 e, mais tarde, da linha do eléctrico entre Sintra e a Praia em 1904. Ali pintou amiúde (a Galeria São Roque que o diga; v. tb. Banzão, 1882, p. 50), mas também erigiu uma ermida (1891) e fundou as Festas de Nossa Senhora da Vila Nova da Praia das Maçãs, com um grande, imediato, persistente sucesso popular até hoje, com desfile de Colares à Praia das Maçãs no último domingo de Agosto. (Ainda que não referido por Cardim, também a família Viana da Motta tinha residência em Colares, onde o pianista José passou parte da sua infância.) A Casa Branca, de Raul Lino, nas Azenhas do Mar, seria construída em 1920. Era, de algum modo, a extremidade dum percurso que guia de viajantes datado de 1928 descreve assim: “passado Colares, encontra-se o Monte Banzão e, pelo caminho, algumas elegantes vivendas […] muitas edificadas fronteiras ao Oceano” (cit. p. 54). Ainda assim, quando os jovens arquitectos se instalaram por ali, a beleza natural já estava sob ameaça, como deixaram expresso em declarações ao Jornal de Sintra em 1941. Adelino Nunes, por exemplo, apontou que “este lindo Pinhal, transição pitoresca entre a serra e o mar, está a ser estragado por algumas construções e principalmente pelo critério especulativo da divisão dos talhões e localização das vivendas [à beira da estrada]”, enquanto Faria da Costa propôs “o recuo obrigatório de 20 metros das vivendas em relação à estrada, para garantir a defesa da paisagem existente […]; que as casas não excedessem 10 % da área total do lote respectivo, garantindo assim o predomínio da parte arborizada; de 15 metros entre as construções; proibir o corte de árvores numa faixa de 50 metros ao longo da estrada”.

Curiosamente, foi a participação de alguns destes arquitectos na construção dos primeiros equipamentos públicos de lazer, como piscinas públicas, na década de 1950, a ter um “impacto imediato na atractividade da região, acompanhado por um surto de construção de moradias de veraneio”, que praticamente triplicou em dez anos. Em 1958-62 foram levados a aprovação camarária — por ano! — mais de 100 projectos de casas de férias na área abrangida pela freguesia de Colares (p. 62), que caíram abruptamente para 50 em 1970 e 30 em 1974.

Este foi também o tempo duma clara mudança seja nos modelos arquitectónicos seja na geração de arquitectos mais activos na construção em Colares. É o chamado “acerto com o tempo” feito por personagens novos. Nuno San Payo copiou ou adaptou modelos alemães filiados na Bauhaus, enquanto Joaquim Ferreira, Maurício de Vasconcellos e Ruy Jervis d’Autouguia denotaram clara influência de colegas brasileiros, em particular de Oscar Niemeyer. Manuel da Conceição Gomes, na Casa Hütter, de 1959 (fotos pp. 96-97), espelha (sic, p. 98) moda norte-americana difundida por revista da especialidade. Francisco da Conceição Silva e Manuel Tainha redescobriam então a arquitectura vernacular, ali sugerida em dois projectos residenciais, de 1958 e 1962, respectivamente Casa Lanterna Branca e Casa Veiga (“uma Pousada de Santa Bárbara em miniatura”, escreve Cardim na p. 93). Mesmo Jorge Segurado saiu do estilo português suave a que estava conotado para fazer, em 1956, outra coisa na casa de veraneio familiar no Alto do Rodízio. A todos eles se juntaria o arquitecto alemão Ernst Neufert (1900-86), que com o lisboeta San Payo desenhou em 1961-62 a Casa Sylvia (de Sylvia Stüssgen, sua cunhada), sob forte influência cruzada, brasileira e norte-americana, e “relativamente imune ao contexto local” (Cardim, p. 99).

Foi esta a casa escolhida para representar na capa do livro este pequeno mundo em acelerada mutação e atenção cosmopolita — num país muito supostamente estanque —, talvez para evitar melindres e disputas corporativas em meio estreito e curto. Porém, obra arquitectónica e de design total, a Casa Lanterna Branca, de Conceição Silva, com a sua “mediterranização do moderno” (p. 90), podia corresponder bem, perfeitamente bem, ao espírito inicial porém actualizado. João Cardim nota que a sua implantação seguiu as recomendações dos autores do Bairro, feitas em 1941 e acima referidas, de recuo face à estrada, “preservando [também] os pinheiros existentes e a privacidade” (p. 91), e que outros elementos de construção guardam semelhanças com os dos edifícios primitivos. Também a Casa Metello, de Teotónio Pereira e Portas (1958-59), no Alto da Salada, em pleno pinhal, na procura de uma vida descontraída dentro e fora da residência, partilha com as do Bairro dos Arquitectos “em certa medida o seu carácter pioneiro” (Cardim, p. 111), com atenção às lições do vernacular.

Seja como for, é a pluralidade de programas construtivos e de soluções postas em planta neste espaço geográfico muito concreto, entre serra e mar, que nos dá a dimensão dos debates de “revisão do moderno” em curso entre profissionais do mesmo ofício e — poderá dizer-se também — de cada um deles consigo mesmo, e que de alguma forma ganharia em ser avaliada numa escala mais vasta, porquanto nesses mesmos anos no Penedo, Guincho, Malveira da Serra, Cascais e Estoril, por exemplo, outras moradias unifamiliares foram desenhadas por arquitectos de primeira linha, como Conceição Silva, que fez para si uma casa no Guincho em 1960 e outra no Dafundo cinco anos depois. A sua Casa dos Galos (1962-64), em parceria com José Tello Zúquete, apenas quatro anos posterior à Casa Metello, da qual diverge, beneficiou dum intermédio périplo nórdico “para ver de perto obras contemporâneas dos arquitectos escandinavos, nomeadamente de Alvar Aalto” (cit. p. 113).

Essa notória e notável aceleração foi empurrada pelo crescimento económico que o país então vivia: Carlos Lima Villas, trabalhando no representante exclusivo para Portugal da Caterpillar, cuja sede no Prior Velho fora concebida por Artur Rosa, apenas três anos depois encomendou ao mesmo arquitecto uma casa de férias na Praia das Maçãs (1964; v. pp. 116-18); e Fernando Silva, autor do complexo Avis-Sheraton, pôde construir ali, em 1965 e 1967, duas casas com “materiais de qualidade acima da média” (Cardim, pp. 126-28). A dupla de arquitectos Palla — Bento d’Almeida, extremamente activa e bem sucedida naqueles anos no comércio em Lisboa (o snack-bar Galeto é inaugurado em 1966), fariam na estrada sobranceira à Praia Grande duas moradias, em 1962-65 e 1966-70. Jorge Segurado, que então concebia o conjunto habitacional da Avenida do Brasil desde 1954, ergueu a casa familiar Sete Choupos de modo a lançar vistas sobre o Palácio da Vila de Sintra, e repercutindo as suas típicas chaminés cónicas, numa “citação historicista, quase pós-moderna”, diz Cardim (p. 95). Outro arquitecto, João Andrade e Sousa — autor do Edifício Gemini, Prémio Valmor 1984 — também ali fez casa, na Tomadia da Praia das Maçãs, em 1966. E Duarte Nuno Simões — futuro arquitecto em Telheiras, anos 1970-80 — também ergueu em Colares duas residências de férias, com clara influência de Wright e Le Corbusier: a Casa dos Pinheiros, de 1965, entre Praia Grande e Almoçageme; e uma moradia no Alto da Salada (fotos pp. 124-25), quatro anos depois. Frederico George desenharia para seu irmão Carlos Henrique uma casa no Vinagre (Colares) em 1970. E quando o Algarve se fortalecia como destino turístico (e novo campo de trabalho para os arquitectos…), novas casas apareceram ainda, por exemplo para pilotos aviadores da TAP, constituindo até bairro próprio a nordeste da Praia das Maçãs, com modelos pré-concebidos por Justino Morais e projectos de António Mattos Gomes, um consultor de aeronáutica e aeroportuária.

João Cardim conclui o seu interessante livro com uma frase inquietante, que merece reflexão: “Que esta condição de vida sossegada e prazenteira no campo seja, na maior parte dos casos, apenas possível com árduo esforço na cidade, permanece um dos fundamentais paradoxos da civilização urbana” (p. 152). Ora bem, ou lá está, como diria hoje um dos afamados moradores de Almoçageme…

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