Roma tinha um. Paris também. Londres idem. Berlim então, nem se fala. Todas as capitais europeias tinham um, exceto Lisboa. Um quê? Um livro que mapeasse o património arquitetónico e que servisse de roteiro para se poder admirar o edificado da cidade com outros olhos. Identificado o problema, a A+A Books lançou-se a procurar a solução e lá surgiu, há nove anos, o Guia de Arquitetura de Lisboa 1948-2013. Do movimento moderno ao contemporâneo.
O livro esgotou rapidamente, o que levou os seus editores de volta à estaca zero: Lisboa já o tinha, o tal guia, mas em lado nenhum se encontrava à venda. Solução? Lançar uma 2.ª edição atualizada e revista — o que aconteceu no fim de 2021 quando a a A+A Books publicou o Guia de Arquitetura de Lisboa 1948-2021. Mas comecemos pelo início.
“Porque é que fizemos isso? Em primeiro lugar, porque somos malucos”, diz, rindo-se, Maria Melo, sócia gerente da Livraria A+A, especializada em arquitetura, há 26 anos a funcionar no rés do chão do prédio da Ordem dos Arquitetos, em Lisboa. “A editora A+A Books surgiu mais tarde com o mote de divulgar e internacionalizar a arquitetura portuguesa”, conta. O seu contacto com o público, com os arquitetos — trabalhou 10 anos no departamento de cultura da Ordem — e a aprendizagem enquanto livreira fizeram-na ver que havia um “défice tremendo na arquitetura portuguesa, sobretudo por não haver edições bilingues.”
Em 2009 reparou que o turismo estava a começar a mexer em Lisboa. “Fazia-me confusão receber na livraria guias de arquitetura de todas as cidades do mundo, e que Lisboa e Porto não tinham nenhum. Sempre achei isso uma coisa estranhíssima.”
Importa agora referir que, na verdade, o primeiro Guia Urbanístico e Arquitetónico de Lisboa, da autoria da Associação dos Arquitetos Portugueses, surgiu em 1987, e que em 1994 se fez um levantamento posterior, no âmbito de Lisboa enquanto Capital Europeia da Cultura. E que um dos autores de Guia de Arquitetura Lisboa 94, a par de Francisco Gentil Berger e Luís Bissau, foi Michel Toussaint.
“Em 1994 ajudei o arquiteto Michel Touissant com esse guia, que foi feito um bocado à pressa, que tinha alguns problemas e que esgotou logo. A partir daí nunca mais houve nada”, conta Maria Melo, que assina com Touissant a coordenação do guia em português e inglês da A+A Books que compreende o período entre 1948 e 2013 e que acaba de ser alargado até 2021. “Quando falei com o Michel, que é um grande professor de história da arquitetura e o meu editor científico, ele ficou muito entusiasmado. Foi assim, três anos antes de o livro sair, que começámos a trabalhar no guia. Foi uma edição muito pensada e estruturada”, acrescenta. “A ideia foi sempre fazer em bilingue e tentar que fosse um guia que mostrasse todo o património arquitetónico de Lisboa. O livro é procuradíssimo lá fora. Tínhamos de o continuar.”
O périplo da primeira edição, que termina em 2013, arranca em 1948 porque foi nesse ano que se realizou o 1.º Congresso Nacional de Arquitectura e que se concluiu o Plano Director da Cidade de Lisboa, de Étienne de Gröer (1882-1974). Maria Daniela Alcântara e Patrícia Bento d’Almeida assinam os textos, além de Michel Toussaint. A segunda edição, revista e aumentada, já alcança o ano de 2021 — considerando o quanto Lisboa mudou desde 2013, da intensa construção que se seguiu aos anos da troika impulsionada pela recuperação económica e do boom do turismo de massas, uma nova edição precisaria sempre de voltar a passar pelo crivo dos editores.
“Olhando para o espaço temporal entre 2013 e 2019, quando começámos a pensar na segunda edição, houve um grande desenvolvimento não só de novas obras como de projetos de recuperação. A cidade desenvolveu-se imenso, por isso achámos que o devíamos actualizar”, explica Maria. Dessa atualização resultaram 50 novas obras que não se encontravam na primeira edição.
O que ambas as versões têm é uma secção dedicada a projetos futuros. Para ter essa chamada de atenção em relação à evolução da cidade, Maria e Michel mantiveram contactos com o departamento de urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa, que os foram informando sobre o que estava previsto vir a acontecer — o que não significa que tudo o que apareça se venha a concretizar.
“É o que está pensado vir a acontecer”, explica. “Como na primeira edição, em que tínhamos o projeto do Hospital de Todos os Santos, do arquiteto Souto Moura, e que acabou por nunca se concretizar. Isto também mostra a capacidade de desenvolvimento e de como a cidade se mexe e de como cresce até em termos geográficos, se é por dentro, por fora, nos arredores, para o outro lado do rio, para o lado de cá.”
Escreveu o arquitecto Michel Touissant na introdução do Guia de Arquitetura de Lisboa 1948-2021:
“De 1948 até à atualidade, percorre-se, com este guia, uma linha temporal que ilustra a Arquitectura em Portugal e os seus ciclos, iniciando-se com o Movimento Moderno num ambíguo tempo de modernização do país, no qual as esperanças de uma evolução democrática do regime se esvaíram (…) Após a 2.ª Guerra Mundial os arquitectos portugueses passaram a reconhecer e integrar-se no panorama internacional que culminou com uma posição internacional prestigiada do país. Assim, o Movimento Moderno, a sua Revisão Crítica, a Pós Modernidade e a Contemporaneidade, mas também experimentações e temas como a pré-fabricação, a flexibilização na habitação, a grande e a pequena escala, a obra arquitectónica como fazedora de cidade, a participação das populações (SAAL), a invenção tipológica, a forma do espaço público, a paisagem, a reabilitação, os vetores ecológicos, a sustentabilidade, o domínio da complexidade, etc. atravessaram e atravessam a produção arquitectónica de excelência na cidade.”
Para Maria Melo, a qualidade da segunda edição superou a da primeira porque já tinham mais experiência. “A primeira edição foi apenas o nosso segundo livro, depois de termos feito a monografia de Bak Gordon. Foi muito duro. As instituições são difíceis, apanhar os arquitetos também, conseguir os materiais, recolher os textos — havia quem os começasse e a meio desistisse — foi uma saga fazer essa primeira edição. No entanto, já ganhou e foi nomeada para vários prémios.”
Em termos arquitetónicos muito mudou nos anos que passaram entre os dois livros, mas o que impressiona mais a livreira e editora é a forma como hoje se está a tentar recuperar edifícios antigos. “É muito bom ver Lisboa a pegar em edifícios que estavam degradados e a recuperá-los. Conheço alguns casos de recuperação absolutamente estrondosos, como o edifício da Universidade Autónoma de Lisboa, entre a Rua de São Paulo e a de São Luís. Isto do guia tem a ver com a nossa memória e história. Temos de guardar para o futuro senão não temos nada. E hoje em dia é uma loucura: faz-se e destrói-se, faz-se e destrói-se. Há esta situação de ser necessário preservar e dignificar a arquitetura portuguesa.”
O guia está dividido em 16 zonas que vão da letra A à P. Cada uma é apresentada por um texto introdutório e um mapa com a localização das obras e planos, seguindo-se as respectivas fichas numeradas de 001 a 251 e de P01 a P07 que incluem um texto, fotografias e/ou desenhos, indicação de autoria e datas, bem como morada, GPS e transportes públicos, mas também uma referência bibliográfica ou infográfica, na eventualidade de a informação base não tiver sido fornecida diretamente pelo arquitecto.
Não é o levantamento total de toda a arquitetura lisboeta, antes uma seleção de mais de 200 edifício de várias tipologias cujos critérios incidem sobre “a qualidade da obra construída” , o que inclui vários prémios Prémio Valmor, Prémios SECIL de Arquitectura e Prémios Gulbenkian Património — Maria Tereza Vilalva, entre outros
Um texto introdutório assinado por Michel Toussaint aborda as intenções e justificações desta segunda edição, enquanto um mapa coloca em perspectiva a localização das zonas. No final, outro texto debruça-se sobre os já mencionados projetos que moldarão — se se concretizarem — a cidade no futuro. Há ainda espaço para duas páginas dedicadas ao Metro de Lisboa, obra arquitetónica de dimensão geográfica, ainda que parcialmente subterrânea. As últimas páginas contêm o índice dos projetistas e toda a bibliografia/infografia referida nas fichas.
É um livro que funciona como um guia de bolso, apesar da capa dura. “Quem for para o Chiado e levar o guia consigo terá uma orientação física do que pode ver e aonde deve ir. E pode escolher ver só reabilitações ou, se preferir, apenas edifícios novos”, exemplifica Maria Melo. Por outro lado, se for até Marvila ou à Alta de Lisboa conseguirá perceber o que há lá de novo, e descobrir novos jardins e espaços públicos que foram impulsionados nos últimos anos”.