Uma equipa internacional de investigadores descobriu que ossadas retiradas nos anos 30 de um concheiro pré-histórico em Muge, Santarém, pertencem a um homem da Idade Moderna, de origem africana, que terá chegado a Portugal através do tráfico de escravos.

As conclusões da investigação, anunciada pela Universidade de Lisboa, são esta segunda-feira publicadas pelo Journal of Archaeological Science e o trabalho foi desenvolvido por um grupo de especialistas de diferentes áreas que incluiu o Centro de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (UNIARQ).

Mendes Correia, antropólogo que realizou estudos na área da arqueologia descobriu nos anos 30 as ossadas agora estudadas por uma equipa multidisciplinar, com base na coleção que se encontra no Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, disse à agência Lusa, via telefone, a geneticista Luciana Gaspar Simões, que trabalha na Universidade de Uppsala, na Suécia.

De acordo com a investigadora, a importância do estudo prende-se com a reconstrução de “detalhes específicos de um indivíduo”, que nasceu em África e morreu em Portugal, onde terá chegado por via do tráfico de escravos. As análises revelaram que terá vivido entre os séculos XVII e XVIII.

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“A descoberta deste enterramento de um único indivíduo da Idade Moderna com ascendência africana é surpreendente, uma vez que os complexos funerários mesolíticos de Muge são internacionalmente reconhecidos pelas centenas de enterros de caçadores recoletores que ali viveram, mas há 8.000 anos”, anunciou a Universidade de Lisboa, ao divulgar a publicação do estudo.

Esta descoberta revela também, segundo os peritos, que as comunidades africanas escravas a viver em Portugal nos séculos XVII e XVIII podem ter “desenvolvido estratégias” para preservar os seus valores e identidade sociocultural.

“Procurando manter crenças e tradições específicas, estas populações deslocadas para Portugal poderão ter encontrado no concheiro do Cabeço da Amoreira o local ideal para o enterro, uma vez que concheiros semelhantes aos de Muge são usados até aos dias de hoje na África Ocidental”, segundo a arqueóloga Rita Peyroteo Stjerna, citada em comunicado da Universidade de Lisboa.

Questionada sobre a importância da descoberta, Luciana Gaspar Simões afirmou que permitiu “olhar para um indivíduo, em particular” e, partindo de várias linhas de investigação, reconstruir o seu percurso, o que é “muito relevante” em termos de investigação.

As análises revelaram também que o objeto do estudo terá morrido em Portugal entre 1630 e 1760.

Através da sequenciação do genoma, a partir de ADN extraído do esqueleto, foi possível perceber que o homem viveu vários anos na África Ocidental, apontando a composição genética para as populações da Gâmbia e do Senegal.

“A análise de isótopos estáveis de carbono permitiu descobrir que a dieta deste homem era feita com base em plantas originárias daquelas regiões africanas, à época inexistentes em Portugal, e de bivalves”, lê-se no documento.

O estudo revelou também a água que consumia, nomeadamente na zona costeira da atual Mauritânia, Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau.

“Apesar de tanto os restos humanos como os registos históricos estarem incompletos, a intersecção de várias áreas de investigação permitiu desvendar detalhes específicos da vida e morte deste homem, o que é raro. As histórias de vida dos africanos traficados e escravizados durante a Idade Moderna na Europa permanecem muitas vezes abafadas em estudos de larga escala”, explicou a investigadora geneticista.

A descrição da sepultura, de acordo com os registos de escavação, permitiu identificar uma camada de areia no fundo, sugerindo “algum cuidado na preparação do enterro neste local inusitado”.

Em Portugal, desde a Idade Média até meados do século XIX, era frequente enterrarem-se os mortos em solo sagrado, o que torna esta descoberta “ainda mais invulgar”, segundo a informação divulgada.

No âmbito do estudo, foram consultados os registos paroquiais de Muge, nos quais está descrito um assassínio registado naquela zona do vale do Tejo: “o homicídio de João, ´moço pardo´”, a 01 de novembro de 1676, no Arneiro da Amoreira, nas imediações do concheiro onde foram escavadas as ossadas. No entanto, “inconsistências sobre a descrição física da vítima”, local de enterramento, e os resultados das análises, não permitem, “com certeza”, associar este caso ao relato que consta nos registos paroquiais.

A conjugação de várias áreas de investigação – arqueologia biomolecular, genética e registos históricos — foi considerada essencial para os resultados obtidos.

“O trabalho que acabamos de publicar sugere que alguns destes sítios poderão ter sido frequentados durante épocas mais recentes e é possível que sejam feitas novas descobertas, sobretudo se for possível cruzar os dados da Arqueologia, História, Genética, e Ciências Naturais”, defendeu Rita Peyroteo Stjerna no documento que acompanha a divulgação do estudo.