Em novembro de 2020, “Industry” – estreou-se por cá na HBO Portugal – mostrava uma realidade de trabalho de jovens licenciados que queriam entrar no mercado de investimento de um prestigiado banco em Londres. Em primeiro ano de pandemia, havia algo de aterrador naquela realidade: a pressão, o bullying, as exigências sem qualquer sentido e a competitividade pela competitividade. O burnout parecia vir mais cedo do que o desejado. O local de trabalho, seja pela forma como a série transpirava a drama adolescente/jovem adulto, ou por aquela realidade diabólica, parecia um inferno. Neste século, há muita ficção sobre o local de trabalho, seja as versões britânicas e norte-americanas de “O Escritório”, excelentes a mostrar as dinâmicas de hierarquia; Mike Judge atacou a coisa em “Sillicon Valley” (e antes, em 1999, no muito recomendável “O Insustentável Peso do Trabalho”) e houve demasiadas séries sobre ambientes de redações. Nenhum o transformou em ficção científica e foi tão cruel a mostrar o presente como “Severance”, uma nova série de dez episódios da Apple TV+.
Criada por Dan Erickson, tem realização de Ben Stiller e Aoife McArdle. Adam Scott, Zach Cherry, John Turturro, Patricia Arquette, Britt Lower, Tramell Tillman e Christopher Walken são os protagonistas. “Severance” é um dos acontecimentos do ano. Sente-se como ficção científica, mas aquele mundo é demasiado parecido ao nosso para lhe ficarmos indiferentes. A sensação é a de estarmos a ver o nosso episódio favorito de “Black Mirror” estendido a um formato de série, onde, apsar disso, não se sente o mínimo esforço para fazer render o peixe ao máximo. Onde o tempo existe para o espectador perceber realmente o que está em causa. Cada episódio surpreende, seja pelo que acontece ou pela forma como nova informação dá uma ideia completamente diferente – e mais aterradora – do mundo apresentado.
[o trailer de “Severance”:]
Eis o cenário: uma empresa, a Lumon Industries, criou uma tecnologia em que, a pedido dos candidatos, é feita uma operação ao cérebro para que este passe a existir em duas realidades diferentes. O seu eu do trabalho não sabe o que “outro” faz quando não está no escritório. O “outro”, quando está cá fora, não sabe o que fez durante o seu dia de trabalho. O corpo é um veículo, as preocupações de fora não entram no local de trabalho, as preocupações do trabalho não entram na vida pessoal. À partida, é assim tão simples. Sim, uma ideia de nova-escravidão entra diretamente na cabeça do espectador e, no primeiro episódio, parece que a série irá ser um flirt sobre isso. Só que, à medida que a coisa avança, o espectador começa a colocar questões: não é só uma questão de memória, há um tempo, uma realidade que é apagada. E quanto mais se pensa nisso, mais se interioriza em toda a desumanização do processo; o trabalhador é carne e ferramenta. Não é um ser pensante.
À medida que mais se vê, mais se percebe a imensa vontade crítica de “Severance”, em relação a uma cultura de trabalho que existe apenas por existir, para uma sociedade aguentar na própria estrutura. Trabalho inútil? Vamos então ao que as personagens fazem: nem elas sabem muito bem o que estão a fazer durante o dia-a-dia. Sentados num computador, passam horas a olhar para números que se movem como se estivessem na água, à procura de números maus. O que são números maus? Como alguém diz a Helly (Britt Lower), a mais recente empregada naquele universo: “saberás quando vires”. Subentende-se que após tanto tempo a olhar para o ecrã encontrar-se-á uma relação com os números e conseguirá notar-se alguns que se destacam. Esses que se destacam deverão ser removidos do ecrã, colocados no lixo. As personagens não sabem o que são os números, o que significa e o que realmente fazem quando os estão a colocar no lixo. Há algo de absolutamente perverso nisso.
Porquê escolher esta vida? No primeiro episódio encontramos a resposta. Mark (Adam Scott) perdeu a mulher há poucos anos. Escolheu iniciar este processo para passar algum tempo do dia sem pensar nela. No trabalho, Mark é robótico, operacional. Por vezes chega lá com olhos vermelhos, com ar de quem dormiu pouco ou com qualquer tipo de ressaca. Os colegas notam, ele não sabe responder o porquê: ao entrar no edifício as memórias da vida de fora são apagadas, mas o corpo não esquece. Ou seja, o “eu” do trabalho desconhece os hábitos do outro, o que faz quando está fora, o que gosta. Está desprovido de qualquer informação que possa ser uma distração. Pelos rostos dos colegas de Mark percebe-se que eles estão lá por razões semelhantes à sua. Aquele chip no cérebro é uma forma de apagar horas do dia. Ao aceitá-lo, é um contrato para a vida. Não se podem despedir do trabalho a que se propuseram fazer.
“Severance” não faz cedências. Sim, há humor, humor de trabalho, mas mantém-se sempre fiel à rigidez do mundo apresentado. É para ser obscuro, sem esperança, um retrato agudo do trabalho enquanto elemento desumanizador. O espectador irá rever-se naquelas personagens e não vai gostar disso. E apesar de ser desolador, vai ter vontade de entrar no mundo de “Severance”, de saber mais e enfeitiçar-se por toda a perversidade do processo, de encontrar um vazio no lado dos “prós” em existir num mundo assim e desesperar ao encarar todos os contras. Um “Black Mirror” sobre o trabalho em modo faca a ser espetada lentamente no estômago. E, sim, grande televisão.