Jeanie Buss está preocupada – oficialmente não, que o discurso para fora repete ad nauseum o discurso de estarem a trabalhar arduamente para que a época ainda venha a ser um sucesso, apesar do péssimo desempenho dos Lakers na época regular, mas Jeanie Buss está preocupada, pelo menos se acreditarmos nas notícias que vêm saindo de gente que faz parte da gerência da organização basquetebolística mais importante dos últimos 40 anos, a mesma que inventou o “Showtime”.
No papel, tinha tudo para correr bem: três super-estrelas juntas, a começar por LeBron James, que durante quase duas décadas foi praticamente uma garantia de ida às Finais, passando por Anthony Davis, um dos melhores homens altos da liga, e a acabar em Russel Westbrook, adicionado este ano ao plantel, e que – avaliado apenas pelas estatísticas – é (ou era suposto ser) uma máquina de pontos, assistências e ressaltos que lhe valem o título de o rei dos triplos-duplos. Três super-estrelas juntas, uma garantia não só de vitórias mas de vitórias à maneira do “Showtime”, dos Lakers, de LA: com muito estilo.
O problema é que o custo de trazer uma terceira super-estrela (Westbrook) obrigou os Lakers a deixar sair quase todo o plantel restante (incluindo os jogadores que foram campeões há menos de dois anos), que acabou por ser completado por veteranos, o que faz do actual plantel uma equipa imbatível – em 2010. Lesões e a falta de química entre os três transformaram os Lakers de claros candidatos à vitória no papel, a candidatos a entregarem os papéis da reforma.
E isto deixa Jeanie Buss preocupada – coisa que o seu pai, Jerry Buss, nunca esteve, pelo menos a avaliar por “Winning Time: The Rise of the Lakers Dinasty”, série de (não muita) ficção que estreia hoje na HBO e que relata a ascensão dos Lakers no final dos 70, início dos anos 80, de eternos derrotados (às mãos dos Celtics) a criadores de uma dinastia basquetebolística invejada como poucas.
[o trailer de “Winning Time: The Rise of the Lakers Dinasty”:]
https://www.youtube.com/watch?v=WqbWwKx1nBU
Em “Winning Time”, Buss (o pai, de quem Jeanie, a atual dona, herdou o negócio) é uma daquelas figuras que a ficção americana cria com a mesma facilidade com que um cozinheiro portuense faz uma francesinha imaculada sair da cozinha: meio sonhador, meio charlatão, cheio daquele charme de gigolo ou vendedor imobiliário, com o sorriso perene de quem promete mais do que pode cumprir, acabando por cumprir com uma mistura de sorte, talento do que os rodeiam, muita lábia e um talento raro para negociar.
Os franceses descobriram um dia que debaixo do pavimento estava a praia – os americanos descobriram que em qualquer praia de LA há uma dúzia de argumentistas por metro quadrado, todos eles capazes de criar um self-made man cujo carisma seja apelativo, apesar dos seus óbvios defeitos – no caso, o Buss que nos é apresentado é viciado em saias, gosta de copos, tem pouca paciência para ler as letrinhas pequenas dos contratos e tende a comprar coisas por valores acima do dinheiro que tem no banco.
Sendo esta uma série sobre o “Showtime” (a alcunha dada aos Lakers criados por Buss, à conta do basquetebol espectacular que jogavam) criado por uma espécie de aldrabão, a série procura estar à altura, recorrendo a todos os truques narrativos que, por estes dias, devem fazer parte do currículo da pré-primária em LA: as personagens falam para a câmara, as contas do que Buss tem de pagar para comprar os Lakers (versus o que tem no banco) surgem desenhadas no ecrã, etc.
Este truque funciona a vários níveis – permite-nos criar empatia por Buss (o magnífico John C. Reilly), dá-nos informação extra que assim não tem de estar nos diálogos, serve como comic-relief (como quando “explica” que o que uma personagem disse é mentira, por exemplo), mas também introduz uma camada de auto-consciência, que é necessária em 2022 quando se vai escrever sobre a vida na década de 70 e 80 de pessoas que ainda estão vivas e cujo comportamento, à luz desta época, seria considerado machista, tóxico, misógino e qualquer outro adjetivo pertencente a este universo temático.
Exemplo: a quantidade de mamas que se veem nos dois primeiros episódios de “Winning Time” é, possivelmente, superior à do total de de mamas que se veem em “Showgirls”, de Paul Verhoven. Magic Johnson, em particular, parece ter duas exatas tarefas na vida: sorrir sempre, não importa o que aconteça, e ter muito sexo (Magic era, aparentemente, um pioneiro, tendo em conta a quantidade de sexo oral que praticava, para uma super-estrela dos anos 70). Já agora, ainda não falámos em Magic — e convém.
Não haveria “Showtime” sem Magic Johnson, o homem que trouxe uma dimensão ao basquete americano até então inusitada: o passe para um lado quando estava a olhar para o outro, rodar 360 graus no ar antes de afundar, passar por debaixo das pernas para enganar o adversário – ao início isto foi visto como exibicionismo, mas o desporto com bola baseia-se em engano e todos esses truques de Magic tinham o condão de enganar o adversário. Conclusão: rapidamente os Lakers tornaram-se uma equipa vencedora.
Sabemos o que aconteceu a Magic: Em 1991, aos 32 anos, quando estava no topo da carreira, descobriu estar seropositivo e abandonou o basquete (apesar de um retorno tardio). É possível que a série seja realista quanto ao apetite sexual de Magic, mas também é possível que, noutros aspetos, jogue mais com os mitos do que com a realidade: Magic apresenta-se sempre publicamente com um sorriso nos lábios (contagiante, diga-se) e na série pouco fala, aliás, praticamente não faz outra coisa com a boca que sorrir (a outra coisa que faz já sabem qual é).
Kareem, a estrela dos Lakers até à chegada de Magic, e que sempre foi um homem fechado, uma espécie de consciência cívica dos direitos e deveres dos negros americanos, é quase caricatural no seu silêncio e pompa – talvez Kareem fosse mesmo assim, mas causa alguma impressão ver um homem que foi um pioneiro da defesa dos direitos dos negros, um homem que, por essa defesa, foi bastas vezes prejudicado, ser reduzido a um tipo sobranceiro e cheio de si.
Isto faz parte, claro, do arco narrativo que a série pretende impor: que os Lakers de Buss eram uma máquina de criar espectáculo, da qual Magic era o principal emblema, mas que incluía o primeiro grupo de dançarinas da história da NBA que abanavam as ancas em trajes menores como se estivessem a ter sexo; ou uma primeira fila recheada de estrelas de Hollywood, porque ficavam bem na TV e isso significava que os Lakers podiam vender mais transmissões de jogos porque as pessoas estavam mais interessadas no espectáculo (e nas estrelas na primeira fila e nas dançarinas) que no basquete.
“Winning Time” não foge aos dramas e problemas internos pelos quais os Lakers passaram e que normalmente as organizações desportivas tentam esconder – a demissão de Jerry West (até então o maior símbolo dos Lakers, apesar de só ter conquistado um título como jogador) da posição de treinador, a contratação de um treinador adjunto que nunca estivera à frente de uma equipa como treinador principal, a ascensão do seu adjunto e de Pat Riley, usando uma técnica convencional da televisão americana que consiste em exagerar ao máximo o mais pequeno drama para depois o resolver com um discurso sobre sonho, vontade, capacidade de nos superarmos.
A realidade é mais crua e mais complexa: Buss era um bully, Riley maquinou a sua ascensão, Magic era um sobredotado que, apesar de viciado em sexo, trabalhava obsessivamente no seu jogo e os Lakers do espectáculo eram, também, os Lakers da porrada, os Lakers do trabalho de ginásio, os Lakers das horas a ver vídeos dos adversários.
Mas a televisão não está propriamente preocupada com isso – não quer pessoas de carne e osso, mas mitos e o mesmo senso de espectáculo que ficou, como mito, acerca dos Lakers de Magic. Nesse sentido, “Winning Time” está à altura: apesar de sabermos o que aconteceu e como aconteceu, queremos ver na mesma, porque brilha muito.