No início deste mês, há poucas semanas, Lia Thomas apareceu na capa da Sports Illustrated. “Só quero mostrar às crianças transgénero e aos jovens atletas transgénero que não estão sozinhos. Que não têm de escolher entre quem são e o desporto que adoram”, disse a nadadora pelo meio de uma entrevista que levava como título “Nadar Como Ela Própria”. O que Lia Thomas não sabia era que essa missão seria ainda mais difícil do que o expectável.
Na passada quinta-feira, a norte-americana de 22 anos fez história ao tornar-se a primeira mulher transexual a conquistar uma medalha de ouro nas provas da NCAA, a National Collegiate Athletic Association. Em Atlanta, Lia Thomas venceu nas 500 jardas livres, cerca de 457 metros, e embora não tenha conseguido bater o recorde universitário da campeã olímpica Katie Ledecky deu o mote para uma carreira que tem tudo para ser de enorme sucesso. Mas que, como se percebeu logo na cerimónia de entrega das medalhas, terá de ultrapassar muitos obstáculos até chegar a um patamar de acalmia.
Lia Thomas ficou à frente de Emma Weyant, Erica Sullivan e Brooke Forde, que marcaram presença na última edição dos Jogos Olímpicos. No pódio, as três nadadoras juntaram-se no degrau do terceiro lugar e tiraram uma fotografia que não incluiu a vencedora — num episódio que foi visto como um protesto contra a participação de uma atleta transexual numa prova feminina. Algo que não soava estranho: poucas pessoas aplaudiram quando Lia Thomas foi anunciada como a mais rápida da prova e a nadadora foi mesmo alvo de insultos por parte de uma franja dos espectadores presentes em Atlanta. Contudo, na sequência da polémica, Erica Sullivan apressou-se a garantir que tudo não passou de um mal entendido.
“Ser sujeita a acusações falsas por parte da comunicação social de direita devido a esta fotografia com as minhas companheiras de Tóquio não acontece todos os dias. Sendo que este assunto ainda está a ser discutido, achei que seria mais fácil publicar a fotografia pretendida e ainda outra fotografia onde apareço a cumprimentar a Lia depois da fantástica prova dela”, escreveu a nadadora no Instagram.
Lia está atualmente no último ano na Universidade da Pensilvânia e competiu durante três épocas na equipa masculina de natação antes de passar pelo processo de mudança de sexo. De acordo com as regras da NCAA, ficou apta a competir em provas femininas depois de completar um período de um ano de tratamentos de supressão de testosterona — a regulamentação que tanta celeuma tem causado na World Athletics e no Comité Olímpico Internacional, com o caso da bicampeã olímpica Caster Semenya, que não é transexual mas tem níveis de testosterona superiores ao dito normal para uma mulher, a ser o mais conhecido. Contudo, para a USA Swimming, as atletas transexuais têm de ter no máximo 5 nmol (nanomoles) por litro de testosterona durante 36 meses (as mulheres cisgénero têm em média entre 0,21 e 3): ou seja, Lia Thomas não é federada, não pode ter recordes não universitários homologados e não pode integrar as delegações olímpicas.
Depois da vitória da nadadora em Atlanta e com a polémica instalada, o presidente da World Athletics comentou o caso e, de forma muito pouco surpreendente, mostrou-se reticente quanto à integração das atletas transexuais de forma livre. “Acho que a integridade do desporto feminino, assim como o futuro do desporto feminino, ficam muito frágeis se não acertarmos nisto. Para mim, não existe qualquer questão sobre o facto de a testosterona ser determinante na performance. O género não pode apagar a biologia. Como presidente da World Athletics, não me posso dar a esse luxo […] A ciência é importante”, disse Sebastian Coe ao Telegraph.
Na tal entrevista à Sports Illustrated, a norte-americana garantiu que pretende estar presente nas qualificações para os Jogos Olímpicos de Paris, em 2024 — ou seja, em teoria, pretende submeter-se aos tratamentos de supressão de testosterona para ser atleta olímpica. Até lá, tal como a CNN referiu nos últimos dias, Lia Thomas é a nova grande figura da luta dos atletas transexuais.