Quarta para jantar

O Descarado (****4)

Petisco é uma palavra maravilhosamente portuguesa. O nome designa um pitéu de porção frugal, e o verbo petiscar significa, literalmente, comer pouco. Mas se dizemos de alguém que “gosta muito do petisco”, o que em boa verdade pretendemos é retratar a criatura como uma incansável enfardadeira. Em linguagem corrente, petisco pouco tem a ver com o que dizem os dicionários, e serve de genérico para tudo quanto dê para partilhar e comer de forma mais ou menos informal, seja com as unhas ou do mesmo prato. Em português, o que conta é sempre a intenção, e é muito portuguesa esta coisa de esconder a alarvidade numa palavrinha sonsa.

Penso nisto, meio a despropósito como é meu costume, ao olhar a ementa do Descarado, restaurante da moda nascido no lugar do falecido Doca Peixe. Leio duas páginas, uma com entradas, outra com pratos. Ora, dizer que um carpaccio, um picapau ou umas gambas são entradas, pressupõe que sejam apenas uma fase da refeição, a primeira, e uma antecâmara para o prato seguinte, o principal. Pelo contrário, chamar-lhes petiscos demonstraria a hipótese de deixar a refeição por isso mesmo — o que não significa comer pouco, como se demonstra pelo termo “petiscada”. Em conversa com a empregada, lá percebo que aquilo a que aqui chamam entradas ficaria realmente melhor servido pela designação petiscos e que há, até, muita gente que prefere jantar nesse registo, picando. Vou nessa.

A carta anuncia-se contemporânea e internacional, o que por estes dias costuma ser sinónimo de toques asiáticos e tiques latino-americanos. E lá estão a maionese de kimchi, as ervilhas de wasabi, as algas nori e wakame, mais os tacos e os ceviches. Só que tudo isso, promete a carta, se cruza com bom produto português, entre peixe do dia, bacalhau e polvo, gambas, ostras e carabineiros, lingueirão e atum, mais uma oferta de boas carnes mal passadas no carvão, das picanhas aos tomahawks. E essa ideia já me agrada mais.

Tudo o que chega à mesa é bom produto e isso é meio caminho feito. Simpática a salada de polvo coreana, que deve a nacionalidade à maionese de kimchi e às ervilhas de wasaby, o cefalópode tenro, mas sem intensidade de sabor. Ótimas as gambas salteadas com maionese de camarão, os bichos carnudos na frigideira, envolvidos no seu próprio caldo, rodelas finas de malagueta, bom equilíbrio doce/picante. Excelente o tártaro de novilho com maionese de alga nori, onde achei pedaços de abacate, maçã, cebola, pimento, servido com umas boas batatas fritas em palitos finíssimos. A carta de vinhos é bem composta sem ser descarada nos preços e eu fico-me por um branco da casa a copo — alentejano, gama média, garantido — que amanhã é dia de acordar cedo. Saio daqui com 35€ por cabeça, que me parece ser o ticket mínimo.

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Portanto, tudo em crescendo, tudo a correr bem, o serviço simpático e atento, a música num volume civilizado, numa noite tranquila e de pouca afluência. Amanhã, afiançam-me, acaba-se o sossego. É que o Descarado propõe um formato que já tinha tradição nesta correnteza à beira-rio e que parece ganhar adeptos neste tempo de pré-pós-pandemia — o do sítio com pinta onde se vai jantar e se fica para um pezinho de dança. Conto pelo menos quatro espaços assim nestas novas Docas. Faz sentido: depois de tanto confinamento, o pessoal já sai para comer, mas ainda não arrisca sair depois disso. Eis a solução.

© Descarado

Lá baixo há um bar grande, mesa de dj, zona de drinks, lá fora duas esplanadas cobertas. Cá em cima é uma sala ampla, lugar para umas boas dezenas, parede envidraçada para o rio, uma decoração cool e acolhedora, sem espalhafato. De quinta a sábado, explicam-me, é aqui que tudo fica mais atrevidote, a casa faz jus ao nome, desarredam-se mesas, abre-se a pista e ala até às tantas. Sendo hoje quarta-feira, percebo que vou ter de sair pelo menos duas noites seguidas se quiser ter uma ideia do que aqui se passa. E eis-me outra vez a pensar na palavra petisco, que também designa uma estopada, sobretudo se adjetivada como “belo petisco”, que é forma de dizer caso bicudo. É que eu já não tenho idade para duas consecutivas. Mas lá terá de ser.

Armazém 14. Ter-Qua 12.00-01.00. Qui-Sáb 12.00-03.00. Dom 12.00-18.00. Telf.: 21 397 0109

Quinta para jantar e talvez um copo

Contra (***3)

As Docas não são o primeiro lugar que me ocorre quando penso em sair à noite — nem o segundo, nem o terceiro — e olhem que se há coisa que eu costumo fazer à noite, aconchegado nas pantufas, é pensar em sair. Em parte, porque isto é um enclave entre uma marina, duas linhas de comboio e oito faixas de circulação divididas por duas avenidas, e parece-me sempre fora de mão. Mas isso sempre foi. Creio que o que me afastou mesmo foi a sensação de que o lugar tinha parado no tempo e temer que me obrigassem a ouvir o Iran Costa cantar “O Bicho” ou acabar a dançar salsa e merengue de mojito em punho. Mas isto está diferente.

Nesta segunda noite janto no Contra, outro spot recente na correnteza. Nasceu no lugar do bar irlandês onde gastei as minhas últimas visitas às Docas, quase sempre a comer fish & chips com uma pint de Guiness. Nem a propósito, logo que chego uma menina informa que se celebra o Saint Patrick’s Day e que se pedir um whiskey irlandês ganho direito a uma raspadinha e habilito-me a um fantástico prémio. Nada contra, mas gosto de jantar sem ativar marcas nem deixar nódoas.

A casa mantém o ambiente descontraído do saudoso irlandês, a mesma decoração de madeira bruta, o bar em baixo, a cozinha aberta em cima, os janelões escancarados para o paredão e as esplanadas. Empoleirada na fachada, ao centro do edifício, está agora a Crista Raínha, a vistosa escultura de Leonel Moura que durante anos montou sentinela ao Tejo no terraço do também falecido Rio Maravilha, à Lx Factory. Mudou-se para aqui em Outubro, onde agora namora o Cristo Rei cara a cara e cria uma atracção visual irrecusável para toda esta zona.

Pego no menu e vejo tacos, ceviches e carnes mal passadas, numa carta que convida a partilhar, e se divide em entradas e principais. Lembra-me vagamente alguma coisa. Nas primeiras experimentam-se uns croquetes do cachaço, bem servidos de carne desmanchada com tempo, sabor de coisa bem refogada, fritos na hora. Seguem-se uns tacos de camarão panado, guacamole, cebola roxa, pico de gallo, coentros e lima — levo mais tempo a nomear ingredientes que a despachá-los em duas dentadas. Saborosos, o conjunto entre fresco e picante, o taco em massa de milho estaladiça. Tudo ok.

Partilho depois uma picanha. Diz que vem do Uruguai, o que me deixa a sentir culpado pela pegada de carbono do bicho, mas reconheço que a carne é de belíssima estirpe, tratada no ponto, só sal. Menos felizes as guarnições. Primeiro as batatas, que me parecem pré-fritas congeladas, embora não sobre uma para amostra (são batatas fritas, mesmo as más não se recusam). Depois um corn n’cheese, que o jovem empregado me recomenda como best seller da casa e com que eu já tinha saudades de pecar. Para quem não saiba, trata-se de uma gordice coreana, pensada para acompanhar carnes grelhadas, mistura de milho com uma javardose de queijo derretido, capaz de curar as ressacas mais violentas. Só que esta chega salgada como o Mar Morto e demasiado enjoativa, talvez por má escolha do laticínio, talvez porque eu não estou ressacado.

© Contra

No conjunto, parece-me um bom lugar para comida gulosa de conforto, e fico de olho na carta de hambúrgueres, toda ela com bom ar. A escolha de vinhos é curta mas certeira, e elege um simpático Dão como néctar da casa, servido à temperatura precisa. Depois desta lambarice proteico-calórica, nem falem em sobremesas.

Saio daqui com 30 paus por cabeça. Passa pouco das 23h00 e as Docas já ronronam sonolentas. Sobram uns gatos pingados no Havana, a fingir que dançam de copo na mão, mais uns gaiatos na esplanada do Nosso Quintal, a cantar que se o Bernardo quer ser cá da malta tem de beber tudo, tudo, tudo até ao fim. Coragem Bernardo. Ainda tento o Descarado, mas já só apanho um ar de fim de festa que não chegou a arrancar e um casal na esplanada, resistindo ao frio e ao olhar acutilante dos empregados. Lembro-me de isto antes ser noite forte nas Docas. Agora parece que a quinta-feira é a nova segunda. Terei, portanto, de regressar uma terceira vez.

Armazém 18. Qua 12.00-01.00. Qui-Sáb 12.00-04.00 (cozinha fecha às 00.00). Dom 12.00-01.00. Telf.:21 164 1637

Sexta para talvez um copo

Começo na casa de banho. Ao meu lado, um jovem urina de telemóvel na mão. Deixem-me precisar: o telemóvel está na mão direita, o ecrã junto ao rosto. A mão esquerda não vem ao caso. A cena deixa-me a pensar na forma como os polegares mudaram o mundo. Há milhões de anos, ter um dedo oponível foi a aquisição evolutiva que nos permitiu pegar em ferramentas e vencer a concorrência de outros mamíferos. Hoje, é o que nos permite mandar lols enquanto fazemos pontaria às bolas de naftalina.

Olho de soslaio para este espécime 4G, ferramentas nas mãos, perfeitamente sincronizado entre tarefas cibernéticas e diuréticas, e calculo que seja bem mais novo do que as Docas são ou do que eu era quando elas inauguraram (nesse tempo, se bem lembro, ainda nem tinha telemóvel e o cúmulo da interatividade chamava-se Windows 95). São 22h30 de uma sexta-feira meio invernosa e a zona está cheia de rapaziada que nunca viu uma moeda de escudo. Isso diz bem da nova vida das Docas. Mas não diz tudo.

O grande passeio parece dividido por tribos. Por exemplo, o 5 Oceanos, casa de bom peixe e de serviço sem espinhas, está bem composto de gente com ar de quem paga a mesada à malta gira que enche a Capricciosa, casa de pizzas, uns armazéns adiante. No Golden Vista come-se street food oriental e canta-se karaoke, no Izanagi degusta-se sushi à meia luz. Cada parcela tem a sua oferta, mas tem também a sua tribo. E tudo isto à beira de água, com esplanadas e barcos e tal. Lembra-me o Algarve. Ir de uma ponta à outra das Docas é mais ou menos como ir de Quarteira a Vilamoura: o caminho faz-se a pé, mas liga galáxias distantes. Pelo meio há o Havana, que é outro planeta ainda.

© Golden Vista

Fui até lá adiante ao Descarado, na esperança de que à terceira fosse de vez. Não foi. À entrada, uma jovem com fatiota preta executiva, chefe de sala ou talvez de cerimónias, informou-me que era ainda hora dos jantares. Que regressasse às onze e o bar já estaria aberto a quem não fosse comensal. Voltei para trás e eis-me então agora no wc do Havana, a olhar de esguelha para o urinol do lado e a pensar em polegares, arriscando um incidente.

O Havana é um híbrido, metade bar, metade discoteca, metade sítio de música ao vivo — as contas não batem certo. Lá fora, um homem da casa adapta o estilo Portas de Santo Antão às Docas de Santo Amaro, namorando quem passa, convidando a entrar. Foi ele quem me informou, com simpatia e notável precisão, que a partir das 22h10 não havia serviço de esplanada. Cá dentro, a pista parece prestes a abrir, o som já se avoluma, mas o povo não. Não mais que dez pessoas e mesmo assim atrair a atenção da empregada revela o mesmo grau de dificuldade de uma discoteca apinhada às três da manhã. A fauna, em boa verdade, também me parece a mesma dessas horas. As imperiais saem em copos de plástico, o vinho idem. É beber e andar.

São 23h45 quando faço nova investida ao Descarado. À porta encontro agora um jovem mascarado de segurança de carrinha de valores. Diz-me que não, é cedo, ainda se janta. “Mas disseram há pouco…” Encolhe ombros e as sobrancelhas: “Tente mais tarde”. Olho lá para dentro, casa cheia, gente bonita, algum glamour, meia idade elegante à minha medida, várias pessoas já em pé e de copo na mão. Por um instante, fitamo-nos, eu e o porteiro, dois sinónimos de descarado, o abelhudo e o petulante. Agora que recordo o episódio, apetece-me recuar dois dias no tempo ou sete mil caracteres na prosa e subtrair uma estrela ao lugar. Mas isso era um bocado indecente — o que, sendo outro sinónimo possível de descarado, não me ficava bem. Além disso, é coerente: da primeira vez também me fiquei pelas entradas.

Hei-de voltar.

O Experimentador Implacável é uma figura fictícia criada por Arnaldo Valente, que por sua vez é pseudónimo de outro fulano. É homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.