Foi um dos momentos mais imprevistos num serão que até essa altura ia arrancando vários bocejos. Em palco, Chris Rock preparava-se para anunciar o vencedor do prémio de Melhor Documentário, mas antes que “Summer of Soul” conquistasse a estatueta, Will Smith levantou-se da sua cadeira no Dolby Theatre, dirigiu-se a Rock, e esbofeteou o anfitrião momentaneamente de serviço. Tudo perante o espanto da plateia, e do público em casa, que ficou sem perceber se a ira era real ou se tudo não passava de uma encenação. Mas não era. A Variety confirmou entretanto junto do departamento da polícia de Los Angeles que Chris Rock não tenciona avançar com uma queixa contra Smith.

“A polícia de Los Angeles está a par de um incidente entre dois indivíduos durante o espectáculo dos Óscares. O incidente envolveu um indivíduo a bater noutro. O indivíduo envolvido não quis formalizar uma queixa. Se a parte envolvida desejar um relatório policial posteriormente, a polícia de Los Angeles estará disponível para conduzir uma investigação”, lê-se no comunicado oficial divulgado por aquela entidade e citada pela revista.

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No cenário do Dolby Theatre, o programa das festas seguiu o seu caminho como se nada tivesse ocorrido. Sean Combs subia ao palco pedindo que os protagonistas do episódio resolvessem a sua divergência. E Al Pacino, Francis Ford Coppola e Robert De Niro juntaram-se para uma homenagem aos 50 anos da saga “O Padrinho” e uma palavra sobre a guerra na Ucrânia — praticamente o único momento em que o conflito foi assunto.

Já sentado no seu lugar, Will Smith ouviu Chris Rock dizer-lhe que tinha apenas feito uma piada. E gritou-lhe: “Mantém o nome da minha mulher longe da porra da tua boca”.

Coube ao filho do casal, Jaden Smith, a primeira reação aos acontecimentos, mais de duas horas depois, com um desabafo no Twitter que promete alimentar ainda mais a polémica. “E é assim que resolvemos os assuntos”, escreveu o rapper de 23 anos, aparentemente referindo-se ao caso.

Mas voltemos àquele que terá sido o motivo da raiva de Smith. Foi em julho passado que Jada Pinkett Smith, incentivada pela filha Willow, decidiu rapar a cabeça, assumindo publicando o seu problema de queda de cabelo — Jada tem lidado com a alopecia nos últimos três anos — e exibindo desde então o novo look, o mesmo com que se apresentou na cerimónia dos Óscares e que terá levado Chris comparar o seu aspeto ao de “G.I. Jane”, numa alusão ao filme de 1997 protagonizado por Demi Moore. Feita a piada, “G.I. Jane 2”, Jada foi incapaz de disfarçar o desagrado com a mesma — e Will travou-se mesmo de razões.

Entretanto, a assistência seguiu os acontecimentos com compreensível estupefação, e as redes sociais enchiam-se com o tópico da noite, lembrando também anteriores episódios em que Chris Rock e o clã Smith haveriam de colidir na sequência de outras piadas, num regresso à cerimónia de 2016.

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“A Jada disse que não vem. “Mas ela não tem um programa de TV?” A Jada vai boicotar os Óscares? A Jada boicotar os Óscares é como eu boicotar as cuecas da Rihanna. Eu não fui convidado!”, ironizou na época Chris, reagindo ao movimento que queria boicotar a sua participação na cerimónia — com Will a juntar-se ao coro de protestos (devido à presença de apenas nomeados brancos na categoria de Melhor Ator).

No rescaldo da agressão, especulou-se se Will sagrar-se-ia vencedor do Óscar de Melhor Ator, categoria para a qual estava nomeado, pelo desempenho em “King Richard”, mas a verdade é que foi mesmo ele, entre lágrimas quem subiu ao palco para receber a troféu.

Num discurso emocionado, Smith, que na longa-metragem dá vida ao pai das tenistas Serena e Venus Williams, lembrou a importância de defender a família e pediu desculpa à Academia pelo incidente. “Richard Williams era um grande defensor da família. Nesta altura da minha vida, neste momento, sinto-me esmagado pelo que Deus me pede para ser neste mundo. Estou a ser chamado para amar as pessoas e para proteger as pessoas”, começou por dizer Smith, lembrando as dificuldades da profissão de ator.

94th Academy Awards - Show

Will Smith no momento do seu discurso de aceitação do Óscar de Melhor Ator © Getty Images

“Sei que para fazer o que fazemos temos de saber aguentar abusos, as pessoas a falarem coisas más de nós. Temos de aguentar as pessoas a desrespeitarmo-nos. Temos de sorrir e fazer de conta que está tudo bem”, afirmou. Smith partilhou ainda as palavras que escutou de Denzel Washington: “É nos teus pontos mais altos que deves ter cuidado, é quando o diabo te tenta”. 

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Admitindo ainda que é um pai “maluco, tal como Richard Williams” e justificando que “o amor faz-nos fazer coisas doidas”, o ator despediu-se agradecendo o momento e formulando um desejo. “Espero que a academia me volte a convidar.”

Depois de tudo isto, Amy Schumer retomaria as funções de co-apresentadora. “Perdi alguma coisa?

Já esta terça-feira, Will Smith divulgou um texto nas redes sociais onde pede desculpa a Chris Rock e à Academia.

“A violência, em todas as suas formas, é venenosa e destrutiva. O meu comportamento nos Óscares de ontem à noite foi inaceitável e indesculpável. Piadas à minha custa fazem parte do trabalho, mas uma piada sobre a condição médica da Jada foi demais para mim e reagi emocionalmente”, justifica.

“Gostaria de te pedir desculpa publicamente, Chris. Estava fora de controlo e estava errado”, escreve o ator. “Estou envergonhado e as minhas ações não são reflexo do homem que quero ser. Não há lugar para violência num mundo de amor e bondade.”

“Também gostaria de pedir desculpas à Academia, aos produtores do programa, a todos os participantes e a todos que os que assistiram em todo o mundo. Gostaria de pedir desculpa à família Williams e à minha família ‘King Richard’. Lamento profundamente que o meu comportamento tenha manchado o que tem sido uma jornada linda para todos nós.”

“Sou um trabalho em progresso”, termina.

De símbolo de amor ao “momento mais feio da noite”: as reações à bofetada de Will Smith

Reconhecendo que “talvez o mundo não goste de como aconteceu”, a comediante e atriz norte-americana, Tiffany Haddish, caraterizou a atitude de Smith como “a coisa mais linda”. A razão? “Fez-me acreditar que ainda há homens por aí que amam e se preocupam com as mulheres”, justificou à People Magazine.

“Quando vi um homem negro a defender a sua esposa (…) significou tanto para mim”, prosseguiu. E atirou: “É o que é suposto o teu marido fazer, certo? Proteger-te”.

Para a atriz norte-americana, Mia Farrow, a bofetada foi “o momento mais feio” da noite, escreveu no Twitter.

Na mesma rede social, o ex-vice governador de Maryland, Michael Steele, além de condenar o ato de violência de Will Smith, criticou também o seu discurso sobre “amor” quando recebeu o Óscar de Melhor Ator pela atuação no filme “King Richard”.

“Will Smith deve a Chris Rock um grande pedido de desculpas”, assegura o cineasta Rob Reiner. Referindo que “não há desculpas” para a violência, Reiner considera que Smith tem “sorte” por Rock não avançar com uma queixa.

O comediante Judd Apatow apagou o tweet– mas o screenshot do que escreveu está a ser partilhado nas redes sociais — onde referiu que Will Smith “poderia ter matado” Chris Rock. “Eles [casal Smith] ouviram um milhão de piadas sobre eles nas últimas três décadas. Não são novatos nem no mundo de Hollywood nem no da comédia. Ele perdeu a cabeça”, lê-se ainda.

Comediantes portugueses críticos de atitude de Will Smith

Vários humoristas portugueses pronunciaram-se contra a agressão do ator Will Smith ao comediante Chris Rock, argumentando que o humor será sempre considerado ofensivo por alguém e que a agressão física não pode ser a resposta a uma piada.

É o caso de Herman José, que, em declarações à CNN Portugal, disse que o “humor é sempre feito à custa de alguém ou de alguma coisa” e que uma “caricatura nunca é percecionada da mesma maneira” por todos.

Para uns é agressão, para outros é abuso, para outros é diversão, para outros arte. O problema aqui é que nunca se deve reagir uma piada com agressões físicas“, afirmou Herman José. “Só nas ditaduras é que o humor tem barreiras, limitações e controlo. A liberdade vem com um preço e terá sempre as suas vicissitudes.”

Outro comediante português, Bruno Nogueira, lamentou, em declarações à SIC Notícias, que as reações se tenham focado na piada e não na agressão. “Há uma pessoa que disse uma coisa, essa mesma foi agredida e estamos a tentar perceber se a que foi agredida passou os limites”, disse, acrescentando que “pouco importa se a piada é boa ou má”.

Ricardo Araújo Pereira, em entrevista ao Jornal de Notícias, sublinhou, por sua vez, que a bofetada de Will Smith se trata de um crime e que o que deveria estar a ser discutido são os “limites da reação a uma piada” e não os limites do humor. “Ficaria muito surpreendido se ontem tivéssemos descoberto que os limites do humor são o cabelo de uma atriz de Hollywood”, disse. “Os limites que interessam neste episódio são os da lei. Um dos intervenientes violou-os, o outro não.”

Também Eduardo Madeira lamentou a “intolerância” que existe atualmente perante o trabalho dos humoristas e classificou a bofetada de Will Smith como “o momento mais disparatado de sempre na história dos Óscares“.

À CNN Portugal, Eduardo Madeira salientou que foi aberto um “precedente” que poderá vir a legitimar que uma piada humorística seja recebida com uma agressão física. “Agora, e de cada vez que conto uma piada estou à espera que apareça um Will Smith“, afirmou. “Fazer piadas, por muito más que sejam, por muito ofensivas, não podem ser justificação para agressões.”

Ao mesmo canal televisivo, o humorista Rui Sinel de Cordes, conhecido por explorar o universo do humor negro em Portugal, elogiou o “profissionalismo de Chris Rock” na reação à agressão de que foi vítima.

“Penso não estar a exagerar se disser que aconteceu um crime em direto, a partir daí estava nas mãos do apresentador e da organização. Sinto neste momento bastante empatia pelo Chris, até porque admiro a reação dele mas sei perfeitamente que não seria a minha”, afirmou Rui Sinel de Cordes.

O humorista João Quadros usou o humor para reagir, no Twitter: “Podemos achar a piada do Chris Rock  de mau gosto, mas um gajo levantar-se armado em macho para defender a mulher, ela não precisa, nem acredito que queira. Fosse ela a dar um soco no Chris era bonito.”