Como diria Forrest Gump, a vida e as cerimónias dos Óscares são como caixas de chocolate – uma pessoa nunca sabe o que vai calhar. A cada novo ano a Academia decide remodelar todo o festim e mudar metade da cerimónia, com o incrível condão de mexer quase sempre onde não devia. Há décadas que se diz que os Óscares são demasiado longos e que as horas de transmissão maçam e assustam o espectador comum e este ano foi dado o drástico (e trágico) passo de cortar oito (OITO!) dos prémios do direto, sendo entregues e gravados antes da emissão e mal colados pelo meio da cerimónia.

Estimo que estamos a meia dúzia de anos de consumirmos isto num único tik-tok e mesmo assim alguém reclamar que está a demorar muito. Com todo o tempo poupado a não homenagear os artistas, acabou por dar para encaixar outros momentos tão ou mais importantes, como uma montagem de vários minutos de cenas aleatórias dos filmes de James Bond na celebração dos 60 anos da personagem e uma coisa chamada Top 5 Cheer Worthy Moments of Cinema que para meu profundo choque não só não é um artigo do Buzzfeed como ainda foi ganho por uma cena do Zack Snyder’s Justice League.

Quanto a apresentadores, depois de três edições sem um host tradicional e com controvérsias (sobretudo com Kevin Hart) e pandemias pelo meio, a Academia decidiu voltar às origens. Se o formato Triunvirato não é inédito, foi a primeira vez que foi apresentado por três mulheres. Como disse Amy Schumer numa das boas piadas do monólogo inicial: “Eles contrataram três mulheres porque ainda assim é mais barato que contratar um homem”.

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A Schumer juntou-se Wanda Sykes e Regina Hall, portanto duas comediantes de stand-up e uma atriz de filmes de comédia e que trouxeram ao começo da cerimónia aquela vibe que se havia perdido nos últimos anos. Com algumas piadas melhores que outras – bocas à idade precoce das namoradas do DiCaprio, ainda que funcionem sempre, não são exatamente o humor mais fresco já feito – mas aquele ambiente de “roast” a gozar e brincar com os convidados parecia estar de regresso.

Após este momento inicial, as hosts deram espaço aos vários convidados que vieram entregar as estatuetas aos vencedores, com exceção de um ou outro momento de sketch, como uma paródia ao filme King Richard que estava ali em território de teatro de revista. No geral, a participação das três pode ser considerada sólida ainda que pouco memorável, até pelo pouco de antena que lhes foi atribuído.

“Plot twist”

E quando a cerimónia juntava pontos para se tornar uma das mais banais de sempre, aconteceu O Momento. Com Chris Rock em palco, o comediante fez uma piada à custa de Jada Pinkett Smith e o seu cabelo rapado, dizendo que ela poderia entrar no “GI Jane 2” (filme em que Demi Moore interpreta uma militar e que tem uma famosa cena em que rapa o cabelo). Will Smith, marido de Jada, levantou-se, dirigiu-se ao palco, esbofeteou Chris Rock e regressou ao seu lugar gritando duas vezes “Keep my wife’s name out of your f*cking mouth”.

Rock manteve-se sereno quanto possível e continuou, mas o ambiente ficou estranho e, por momentos, as redes sociais explodiram numa verdadeira divisão entre se o episódio seria real ou uma encenação para tentar viralizar e tornar os Óscares relevantes novamente. Aos poucos fomos descobrindo que foi genuíno e que Jada tinha revelado há meses sofrer de alopécia, uma doença que acelera a perda de cabelo, o que terá ofendido o ex-Fresh Prince of Bel Air.

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Como se este não fosse já o momento mais OH MEU DEUS da história de uma cerimónia com 94 anos – caro Warren Beatty já pode relaxar – menos de uma hora depois o mesmo Will Smith estava a aceitar o Óscar de Melhor Ator Principal e a fazer um discurso em que pediu desculpa a todos menos ao agredido. Pode ter sido também um dos discursos mais longos da história recente dos Óscares, com Smith a deambular enquanto lidava com, imagino, todas as emoções possíveis do espectro ao mesmo tempo – acho que, depois de verem o que aconteceu ao Chris Rock, nenhum músico do mundo teria coragem de tocar a famosa sinfonia que silencia estes momentos.

“CODA”, o remake americano de um original francês que conta a história de uma jovem filha de pais surdos e tem sido elogiado pelo seu papel na luta pela inclusão e representatividade de comunidades sub-representadas, acabou por vencer o Óscar de Melhor Filme de forma algo surpreendente – embora não tão surpreendente como a direita de Will Smith.

Prevejo que os próximos dias sejam preenchidos por conversas e debates sobre os limites do humor e masculinidade tóxica (o segundo tema bem mais urgente que o primeiro) enquanto o mundo se esquece que a invenção da Academia de criar o Óscar de Fan Favorite Award foi para “Army of the Dead”, um filme de zombies que Zack Snyder fez para a Netflix, e que tem média de 5.7 no imdb.

Pedro Silva é comediante