Certas ocasiões prestam-se a afirmações absolutistas, potencialmente exageradas, movidas quase exclusivamente a fé: os Pavement regressam para uma série de concertos que comporão, por certo, a sua última digressão no exato instante em que reeditam o seu último e mal-amado disco, Terror Twilight, e só nos ocorre dizer: os Pavement foram, PORVENTURA E SEM A MÍNIMA DÚVIDA, a melhor banda de rock que alguma vez existiu neste pequeno planeta.
Consigo ouvir, ao fundo, nas casas e telefones com acesso à internet que por algum motivo inqualificável vieram parar a este url, a indignação a amontoar-se antes de explodir: então e os Beatles, os Beach Boys, os Stones, os Stooges, os Velvet, os Sonic Youth, os Joy Division?, e mais uma torrente de nomes, consoante os gostos, a idade, a circunstância, o humor do dia, a roupa que se vestiu.
O problema das afirmações absolutistas, potencialmente exageradas, movidas quase exclusivamente a fé, é que são extremamente difíceis de provar, para mais quando os nossos oponentes são – possivelmente, que não quero ofender ninguém – seres humanos menos sofisticados que o autor da afirmação absolutista, potencialmente exagerada, movida quase exclusivamente a fé.
Impõe-se portanto uma contextualização, uma circunscrição do universo semiótico da oração proferida: nasci em 1975 e, para poupar trabalho a todos os indignados, conheço bem a história do rock, obrigado, quem a empurrou, quem a fez recuar, os atalhos que tomou, o que jaz a jusante da nascente, o que faz juz aos juízos consagrados. Mas nasci em 1975 e por mais apreço que tenha por quem veio antes ou depois, a minha ligação emocional com um par de bandas nascidas e implodidas durante a minha adolescência será sempre mais forte que a minha admiração intelectual pela mudança tonal no 48.º compasso de “Tomorrow Never Knows”.
[“Spit on a Stranger”:]
Menos polémico seria dizer que os Pavement definiram o indie-rock tal como este foi praticado na década de 90 e não, não estou a esquecer-me dos Stereolab ou dos Morphine ou dos Halo Benders ou dos Built To Spill. A conjugação de inventividade, desconstrução do formato canção, capacidade melódica e alcance coloca-os neste patamar – em parte porque, neste exato momento, é aquilo em que acredito (e que porventura poderá ser diferente amanhã, mas amanhã já isto está publicado) e, como foi atrás dito, estou na posse de uma sofisticação intelectual insofismável.
Como com outros discos dos Pavement, a reedição de Terror Twilight vem sobrelotada – de demos, esta ou aquela canção que nunca havia visto a luz da vida, muitas versões alternativas do que chegou às lojas, lados B que só chegaram à superfície em regiões remotas do Japão; é uma obra para colecionadores e estudiosos que se interessam pelo caminho que uma canção percorre desde a primeira gravação à guitarra acústica, num quarto, até à versão oficial, passando pela sala de ensaios. Como bónus, o primeiro disco tem um alinhamento que Nigel Godrich, o produtor, defendeu que devia ser o alinhamento final do disco (e não foi, esse acabou por ser escolhido por Spiral Stairs, o segundo homem das guitarras dos Pavement, que neste disco não compôs uma canção).
É difícil explicar hoje o sentimento de fim que se apoderou de TODA A JUVENTUDE FIXE (e se está na internet em caps lock é porque é verdade) entre os 15 e os 25 quando saiu Terror Twilight: os discos dos Pavement eram, por norma, indomáveis, as canções cheias de partes diferentes, baixos fundos a seguirem-se a altos rarefeitos, esquinas apertadas antes de avenidas plenas de luz, muita berraria, muita desafinação – e Terror Twilight vinha cheio de crepúsculos doces, algum negrume mas quase nenhuma agitação: era o disco de uma banda que havia aprendido a tocar (Stephen Malkmus, principal compositor e vocalista tornar-se um guitarrista de eleição) e que aqui quase se aproximava do mainstream. Em suma: era tudo muito direitinho.
[“Major Leagues”:]
As apreciações que fazemos aos 23 são diferentes das que fazemos aos 46: Terror Twilight não é direitinho, até porque ainda tem demasiadas arestas por limar, dissonâncias, melodias estranhas e explosões para ser amigo do FM convencional (e bastaria aquele solo quase glam em “Cream of gold” para provar o que digo), mas é – argh – adulto, e adulto é a pior coisa que um disco pode ser quando somos novos. É o disco de uma banda que se encontra perto do abismo e resolve dar um passo em frente – como um casal que assina os papéis do divórcio porque, apesar de ainda gostarem um do outro, consideram que discutem de mais e isso faz mal aos garotos, e não conseguem chegar a um local de paz. Pior que adulto, é um disco maduro. Maduro, minha nossa. Que horror.
O sucesso, o dinheiro e a idade têm este condão: tornam o que era livre, divertido e adolescente numa obrigação, num contrato que não traz felicidade a nenhum dos que assinaram. Uma boa parte da alegria de fazer parte de uma banda (mesmo daquelas que nunca deram um concerto) é a camaradagem, o sentimento de grupo, de bando, que só existe quando se é miúdo. Mas após quatro discos, contratos com editoras, e quase uma década de digressões a partilhar o cheiro das meias por lavar há uma semana dos colegas de banda, tudo amarga. Aos 15 anos queremos pertencer a um grupo; aos 27 queremos seguir com a nossa vida, sem estar sempre a aturar um bando de garotos imbecis a fazerem piadas parvas de manhã à noite. É assim que as bandas rock morrem: não só por exaustão de ideias, mas porque a vida avança.
Durante quatro extraordinários discos – Slanted and Enchanted (1992), Crooked Rain, Crooked Rain (1994), Wowee Zowee (1995), Brighten the Corners (1997) – os Pavement foram uma banda de putos, no melhor sentido do termo: sem amarras, a misturar tudo o que lhes apetecesse, da country às jangly guitars à Birds ou à Aztec Camera, a explosões sónicas, cantavam foram do tom, faziam solos a leste da tónica que resultavam quase por milagre, berravam onde não se esperavam, tinham duas baterias, paravam canções a meio e, disco após disco, foram aumentando o seu leque sonoro, sem nunca diminuir o grau de frescura das canções.
[“Carrot Rope”:]
Claro que tiveram sorte: em 1991 os Nirvana explodiram, e já antes, com os Pixies e os Sonic Youth, o que até então se chamava college rock foi alargando o número de fãs – quando os Pavement apareceram (a soar aos Fall, num Slanted and Enchanted que incluía canções perfeitas como “Here” e “Two States” e ainda deixava de fora “Frontwards”) pareciam não só A Melhor Banda do Mundo como – mais importante ainda – A Melhor Banda do Mundo Que É Só Nossa, de nós, os esquisitos que não ouviam a RFM e liam livros e viam filmes em que a principal língua não era a inglesa.
Ao contrário do que acontecia com os Stereolab, os Morphine ou os Built To Spill, os Pavement possuíam alguma normalidade que dava a entender que sob certa luz, determinada quantidade de água, em certos solos podiam florescer até atingir o cume das tabelas de vendas – não era uma hipótese óbvia, mas estava ali, como uma ameaça velada ao nosso tesouro. Quando Terror Twilight chegou, com o seu som mais adocicado, um menor número de explosões e um certo negrume adulto, quando Terror Twilight se mostrou ser um disco quase equilibrado e com os pés na Terra – foi nesse momento que nos apercebemos que não haveria Pavement por muito mais tempo e íamos ficar órfãos.
[ouça a reedição de “Terror Twilight” dos Pavement na íntegra, através do Spotify:]
É daqueles mistérios da natureza: 23 anos depois, Terror Twilight é muito melhor do que na altura; a própria banda, que odiou o disco na altura e não o escondeu, reconciliou-se com estas ótimas canções crepusculares e tremendamente bem escritas – quem resiste à explosão na 2.ª parte de “Speak, see, remember”, à melodia perfeita de “Ann, don’t cry”, à melancolia de “Major leagues”, aos dedilhados e refrão de “You are a light”?
Terror Twilight, mil perdões: foste estes anos todos um grande, grande disco de despedida e nós é que não estivemos à tua altura. Dentro de escassas semanas vamos poder homenagear este disco mal-amado e despedir-nos dos Pavement e da nossa adolescência – se as regras do rock ainda estiverem vigentes, nesse exato momento a tocha será passada e começará a adolescência de um qualquer garoto de 15 anos que, apanhado de surpresa, irá a correr descobri-los.
“Time is a one way track/ and I’m not coming back”, cantava Stephen Malkmus em “Cream of Gold”. Para sorte de velhos e putos, vai voltar mais uma vez.