David Byrne faz 70 anos. Normalmente é uma idade para gozar a reforma e aceitar o peso do corpo, mas Byrne não parece particularmente interessado em calçar as pantufas. Continua ativo e atento, como sempre foi, e fisicamente ágil, como se percebeu pelas coreografias de “American Utopia”, o espectáculo musical tornado filme por Spike Lee em 2020. De resto, não faltam exemplos recentes da vitalidade de Byrne. Um pouco antes de lançar o seu primeiro álbum em 14 anos, American Utopia (2018), pegou no título de um clássico de Ian Dury, “Reasons to Be Cheerful”, e criou uma revista online para divulgar isso mesmo: razões para sermos otimistas.
A ideia era partilhar soluções já existentes para tornar o mundo melhor, o que vai dos transportes públicos à ciência e tecnologia, economia, saúde ou educação. Na altura, Trump tinha sido eleito presidente dos Estados Unidos e David Byrne admitiu sentir-se muitas vezes deprimido com o estado do Mundo, por isso começou uma terapia: colecionar boas notícias, daquelas que fazem acreditar que “há coisas positivas a acontecer, e pessoas a encontrar soluções para problemas”. O site continua ativo, aceita contribuições, e tem artigos sobre assistência médica gratuita a crianças no México, um bairro de Chicago que quer produzir a sua própria energia e até o regresso do condor. A par das várias práticas artísticas em que se multiplica, Byrne é também um pensador crítico e um ativista — do uso das bicicletas por exemplo, até já escreveu um livro sobre isso (Bicycle Diaries, 2007).
Embora pensemos nele quase sempre como músico, o homem que começámos por conhecer à frente dos Talking Heads é um artista verdadeiramente transdisciplinar. Já o era em 1986, quando a revista Time fez capa com ele sob o título “Rock’s Renaissance Man”, listando todas as suas atividades à época: cantor, compositor, letrista, guitarrista, mas também realizador, escritor, ator, videasta, designer e fotógrafo. Na altura, além do trabalho com os Talking Heads, Byrne tinha apenas um álbum em colaboração com Brian Eno (o influente My Life In The Bush of Ghosts, de 1981) e algumas bandas sonoras. A do seu filme “True Stories”, mas também a do espectáculo de dança de Twyla Tharp, “The Catherine Wheel”, e Music For The Knee Plays, com música para uma peça de teatro de Philip Glass e Robert Wilson.
Desde essa edição da Time, os Talking Heads acabaram e David Byrne gravou sete álbuns em nome próprio, trabalhou novamente com Brian Eno, mas também com nomes novos como Dirty Projectors, St Vincent, Arcade Fire, Anna Calvi ou Mitski, compôs bandas sonoras para teatro, cinema e televisão, fundou a editora Luaka Bop, criou uma rádio online, expôs fotografias e desenhos, publicou uma dezena de livros, desenhou bicicletas, fez palestras e musicais para teatro, e até fez de si próprio num episódio dos Simpsons (encanta-se com uma canção de ódio de Homer Simpson e acaba a gravar com ele). A pessoa e o seu pensamento parecem imunes à passagem do tempo, mas a história confirma que o legado de David Byrne corresponde à idade que tem. Na verdade, corresponde a bem mais do que isso, tendo em conta a sua hiperatividade.
David Byrne é visto como um homem da América mas nasceu na Escócia em 1952. Quando tinha dois anos, a família emigrou para o Canadá, aos oito, mudaram-se para os Estados Unidos. Apesar de viver, trabalhar, e até votar, em território americano desde 1960, David Byrne só se tornou de facto cidadão americano em 2012. Aparentemente, não estava consciente da sua ilegalidade, só descobriu quando tentou votar e lhe disseram, pela primeira vez, que não podia fazê-lo. Imagina-se que, até aí, ninguém lhe tivesse pedido a identificação por ser sempre reconhecido…
Os primeiros anos na América foram passados em Baltimore, com um fascínio pela música alimentado pelo pai, que lhe oferecia um single por semana e também lhe arranjou um gravador. Nunca se notabilizou pelos dotes vocais, foi aliás corrido do coro da escola, e o próprio pai disse em entrevista ao Washington Post que o filho não sabia cantar. Isso não o impediu de ter algumas bandas no liceu, sobretudo de versões. Depois foi estudar arte e design para Rhode Island, desistiu (ou fizeram-no entender que era melhor desistir…) e formou uma banda com o baterista Chris Frantz. Chamavam-se Artistics mas tiveram vida curta. Os Talking Heads nasceram em 1975, quando Byrne, juntamente com Chris e a namorada, Tina Weymouth, vão viver para Nova Iorque. A vontade de ter uma banda era grande mas precisavam de um baixista. Chris sugeriu Tina, mas David Byrne só a aceitou no lugar depois de fazer três audições. O papel predominante de Byrne na banda fez-se sentir logo na génese.
O primeiro concerto, então em formato trio, aconteceu no lendário CBGB, na primeira parte dos Ramones, com quem, dois anos mais tarde, também fariam a primeira digressão europeia. Em 1977, os Talking Heads ganham um novo elemento, Jerry Harrison, editam o primeiro álbum, 77, com o infeccioso “Psycho Killer” e começam a ganhar notoriedade na fervilhante cena musical de Nova Iorque. Depois chega Brian Eno, que produz três discos fulcrais: More Songs About Buildings and Food, Fear of Music e Remain in Light, e abre novos horizontes musicais apresentando a banda, por exemplo, à música do nigeriano Fela Kuti. Eno e Byrne iniciaram no final dos anos 70, uma parceria que deu frutos, dentro e fora dos Talking Heads, e uma amizade que se mantém até hoje.
Não podemos resumir a história de Byrne aos Talking Heads, mas a sua personalidade artística não seria a mesma sem eles e o contexto em que surgiram Na cena artística de Nova Iorque, em finais de 70, inícios de 80, disco, punk, hip hop, música latina, africana, contemporânea e experimental coabitavam em espaços frequentados por artistas de vários universos, num diálogo que gerou cineastas como Jonathan Demme, Susan Seidelman ou Jim Jarmusch, artistas plásticos como Jean Michel Basquiat e Keith Haring e bandas como Sonic Youth, Liquid Liquid, James Chance and the Contortions ou Talking Heads, entre muitos outros. Era uma época de procura de novos estímulos e fórmulas e os Talking Heads souberam aproveitar as influências de funk e de ritmos africanos para criar uma identidade sonora própria, personificada, sobretudo, na figura icónica de David Byrne, nos seus fatos extra-largos (que assumiu como farda no filme concerto “Stop Making Sense”, de Jonathan Demme e manteve durante vários anos), na peculiar forma de se movimentar (dançar?) e nas letras das canções, quase sempre com alguma tirada que ficava na memória (quem não revê em alguma coisa de “Once in a Lifetime”, por exemplo).
À medida que a sua imagem e reputação de líder se impunha, o descontentamento, sobretudo do casal Chris Frantz e Tina Weymouth, aumentava. As relações começaram a esfriar depois da edição de Remain in Light (1980) mas a separação só aconteceu 4 álbuns depois, em 1991. Chris e Tina mantêm ressentimentos até hoje, que expressaram, por exemplo, no livro biográfico Remain In Love (2020). O próprio Byrne admitiu em entrevista ao The Guardian, em 2018, que é possível que não se tenha portado muito bem na altura, por conseguir ser bastante obsessivo e chato (“pain in the ass”, nas suas palavras), mas também disse que é normal nos divórcios as pessoas ficarem com rancor e não mostrou interesse em qualquer reconciliação ou regresso dos Talking Heads.
A separação da banda foi complicada, mas a verdade é que, com os Talking Heads, Byrne assinou discos históricos, que ultrapassaram definições de estilo, cruzando rock com ritmos e polirritmos afro-latinos. Byrne explorou esse universos também a solo, em discos como Rei Momo ou Uh-Oh, ou através da editora Luaka Bop, que criou em 1988, e que tem lançado várias compilações de world music e dado a conhecer artistas como Tim Maia ou William Onyeabor. O catálogo da editora é bastante extenso e diverso, inclui Paulo Bragança (Amai, 1996), Moreno Veloso, Zap Mama ou a colaboração entre o produtor de música eletrónica Floating Points e o saxofonista free jazz Pharoah Sanders (Promises, 2021).
O interesse de David Byrne não parece cristalizar e continua a traduzir-se de forma intensa e diversificada. É um homem com um espírito inquieto, cuja criatividade continua a expandir-se em muitas direções, mas que nunca se desligou da música. American Utopia, o disco de 2018, mostrou-o mais uma vez no papel do observador que olha e comenta a América e os humanos, mais preocupado em soar pertinente do que em viver de créditos passados, algo que até seria legítimo aos 70 anos, tratando-se de outro tipo de pessoa. Mas David Byrne não parece interessado em ter idade, embora, como bom observador/comentador, não desdenhe do lugar que conseguiu e da experiência que os anos lhe conferem. Daqui a 10 anos, muito provavelmente, estaremos a falar das coisas extraordinárias que vai fazer a partir de agora e, idealmente, falaremos também de como ajudou a melhorar o mundo através da sua coleção de notícias positivas. Parabéns e obrigada David Byrne. Há razões para sermos otimistas.