Um semáforo em tamanho real, luz verde para os veículos e laranja para os peões. Uma passadeira, um caixote do lixo cinzento e uma caixa de multibanco na parede, imagens de transportes públicos e escadas rolantes. Em palco sente-se um ritmo frenético da uma cidade aparentemente normal, os atores andam energicamente de um lado para o outro e o narrador explica que um homem cega repentinamente e passa a ver tudo branco. Será dos nervos? Será uma brincadeira? Será diabetes? Será sífilis? Não, não há explicação. “Se ficar assim para sempre, mato-me”, diz. A luz do semáforo continua verde e tudo parece movimentar-se como é habitual.
O cenário incorpora um sofá que nos transporta para uma casa, uma mesa que simula um consultório médico e até uma fila de cadeiras que faz lembrar uma sala de espera. Em poucas horas, a cegueira repentina e surpreendente espalha-se por várias personagens, que a encontram em diferentes situações, sejam no meio de um orgasmo ou de uma refeição. O desespero e o medo instalam-se imediatamente.
“Não te chegues a mim que te contagio.” “A morte também não se pega e, apesar disso, todos morremos.” O sinal do semáforo fica vermelho, as autoridades de saúde falam em cegueira epidémica, quarentena, medidas, responsabilidade, proteção e solidariedade, mas também da necessidade em separar os que veem dos que já não o conseguem fazer.
O cenário transforma-se lentamente num manicómio com camas feitas em ferro, paredes inóspitas e árvores despidas. Os primeiros a chegar a este lugar rígido, sombrio e intimidante é um casal, ele cegou e ela fingiu cegar para o acompanhar. Ouvem-se sirenes, chega mais gente e onde a solidariedade devia reinar, luta-se pela sobrevivência, enquanto lá fora uma cidade esmorece e se devasta.
As semelhanças de Ensaio Sobre a Cegueira (1995) com os nossos dias são mais do que muitas, mas Nuno Cardoso, encenador e diretor artístico do Teatro Nacional São João, recusa qualquer paralelismo com a atualidade. “Apesar da catástrofe e da tragédia enorme que é o que estamos a viver, a peça não é sobre a epidemia de um vírus exterior ao homem, mas sim sobre a cegueira epidémica do homem saudável.”
Esta é a primeira vez que o encenador trabalha um texto do prémio Nobel literário português e revela que a escolha aconteceu antes do período da pandemia e não foi imediata. “Estava indeciso entre trabalhar Saramago ou Eça de Queirós, o meu escritor de juventude e que sempre quis fazer. Dentro do universo de Saramago, dividi-me entre o ‘Ensaio Sobre a Lucidez’ e o ‘Ensaio Sobre a Cegueira’, mas achei que este é uma parábola sobre o nosso mundo de redes sociais.”
É com este mote tecnológico que Nuno Cardoso apresenta uma problemática à plateia e convida à reflexão. “Toda a gente que está a olhar para o telemóvel está cega, não vê o que se passa à sua frente, fazem scroll e não estão a ver com quem estão a jantar, por exemplo. O ecrã é um sinal de conectividade, graças a ele estamos ligados, podemos reagir e damos conta que o homem nunca teve paz, esteve sempre em guerra. Essa possibilidade enclausura-nos numa narrativa que é só nossa, somos a multidão que nos rodeia, somos uma multidão de nós mesmos. É por isso que as pessoas reagem tão mal a discursos sobre género, igualdade, paridade, esquerda ou direita, raça ou crença. Está toda a gente tão encerrada na raiz da sua razão que cega, não discute, só vê quem vê da mesma maneira. Acho que foi isso que me fez escolher este texto.”
300 páginas de aflição e um processo criativo duro, violento e exigente
“Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.” José Saramago descreve assim este romance, adaptado agora para teatro numa coprodução ibérica entre o Teatro Nacional São João, no Porto, e o Teatre Nacional de Catalunya, em Barcelona.
“Uma vez que os olhos que veem durante a obra são os da mulher do médico, pensei que o mais indicado seria convidar uma dramaturga para fazer esta adaptação”, revela Nuno Cardoso. Foi assim que surgiu o nome de Clàudia Cedó, uma jovem dramaturga catalã, que, apesar de serem visíveis algumas variações, baseou-se muito nas palavras do autor. Num trabalho conjunto de reinterpretação, inicialmente via zoom, “um dos grandes esforços foi chegar a um tom quase desarmante que este romance tem ao descrever uma situação tão violenta e tão cruel.”
Para Nuno Cardoso, habituado a encenar grandes clássicos mais conservadores e tradicionais, o desafio centrou-se sobretudo em transformar um texto narrativo, repleto de descrições, numa linguagem teatral e em opções cénicas baseadas num jogo de personagens e de línguas. “O facto de Saramago não nomear personagens e fazer uma espécie de relatório do que aconteceu adequa-se a este projeto bilingue, em que podemos passar de uma língua para outra, de um personagem para outro, porque a cegueira de que ele nos fala é a cegueira da razão, das pessoas que não enxergam, mas que se vêm, que não reparam, mas se aprimoram ao espelho.”
Os 14 atores que compõem o elenco — Ana Brandão, Adriana Fuertes, Albert Prat, Ferran Carvajal, Gabriela Flores, Jordi Collet, Jorge Mota, Lisa Reis, Mafalda Lencastre, Maria Ribera, Montse Esteve, Paulo Freixinho, Pedro Frias, Sérgio Sá Cunha — entre portugueses e catalães, partilham figurinos, não assumem apenas uma personagem ou uma língua, ainda que se movimentem em grupo, numa espécie de coro.
Se para Saramago o livro resultou em “300 páginas de constante aflição”, para Nuno Cardoso a encenação foi igualmente aflitiva, violenta e exigente. “O processo de trabalho foi violento, de pânico, de desenrascanço e as opções cénicas surgiram na aflição. Fui construindo a fábula como se isto fosse uma espécie de problema a expor ao espetador, criando a necessidade, num exercício socrático, de pensarmos sobre as coisas e a sociedade em que vivemos.”
“Ensaio Sobre a Cegueira” estreia-se esta sexta-feira, 10 de junho, e estará em cena até dia 19 de junho, de quarta a sábado, às 19h, e domingo às 16h, e o preço dos bilhetes varia entre os 7,50 e os 16 euros. O espetáculo integra o programa de comemorações do Centenário de José Saramago e depois da estreia no Porto parte para uma digressão ibérica.