Lara e Pedro Seixo Rodrigues cresceram na Covilhã a olhar para a MTV, onde a arte urbana, do grafitti à ilustração, ainda eram apenas uma miragem em Portugal. Entre muitas viagens, sempre a olhar para ruas, linhas de comboio e paredes despidas, a dupla de irmãos mudou-se para Lisboa. Foram os dois estudar arquitetura. “Começámos a viajar para Espanha onde já existia muito grafitti. Passámos muito tempo a ver MTV, absorvemos muito. Quando nos mudámos para Lisboa fomos acompanhando a evolução de forma Anónima. Depois, fomos até ao festival Fame, em Itália e em Espanha ao Assalto. Percebemos que seria bom replicar o modelo na Covilhã. Assim foi”, conta Lara Seixo Rodrigues, curadora, produtora do festival Wool que decorre entre 11 e 19 de junho.

Assim foi, sim senhor. Uma “paixão partilhada” que não é um negócio puro e duro mas sim um projeto que desenvolveu uma identidade própria, catapultou artistas como Bordalo II e colocou, frente a frente, o artista com o público. Fez-se assim um festival no interior do país, num cruzamento entre gerações, novas e velhas, em que a arte urbana é o ponto de encontro para preservar a memória de um território industrializado (e abandonado em certos lugares) e uma arte cada vez mais em voga. Com uma década de partilhas, a equipa que organiza o festival – onde se encaixa também Elisabet Carceller, mulher de Pedro Seixo Rodrigues – resolveu, este ano, lançar um livro comemorativo que faz uma retrospetiva da vida deste festival. “A ideia deste livro surgiu há dois anos porque queríamos ter uma espécie de arquivo. Foram anos muito intensos, de muita luta e persistência de um projeto que nasceu na Covilhã mas viajou para fora de portas. Teve e tem um papel importante no desenvolvimento da arte urbana e é o festival que ainda mantém essa identidade. Tínhamos muitas histórias para partilhar. Teve de ser num livro”, revela Lara Seixo Rodrigues.

Nestas páginas encontram-se não só memórias de vários murais espelhados pela Covilhã, mas também textos de investigadores, curadores, arquitetos, artistas e programadores. Mas nestes dez anos, as histórias que se guardam são mesmo as dos covilhanenses como a da Dona Rosa. “É uma ferrenha adepta do festival. Um dos primeiros murais foi feito perto da janela da casa dela. Logo a seguir foi agradecer aos aristas porque passou a ter companhia. Acabou a fazer-nos uns trabalhos de costura para nós”, conta a produtora. Outra memória, logo dos primeiros dias do Wool, conta-se através de um morador que interrompeu um artista, Gonçalo Mar, que estava a trabalhar com um esqueleto e um novelo de lã como a cabeça e uma ovelha nas costas, numa barraca montada à frente de um mural. “O senhor virou-se para o Gonçalo e disse: você está a pintar um esqueleto porque é a morte do pastor porque já não há. Só que a peça não tinha nada a ver com isto. Acabou por fazer todo o sentido”, explicou.

Mas no Wool não há só arte urbana. O festival também se compõe de projetos paralelos, com um grande envolvimento entre os artistas e a população da Covilhã. Espelho disso são as visitas guiadas e o Wool on Tour, onde é feito um convite aos artistas, “não necessariamente urbanos” a experimentar noutra escala. Outra escala? Sim, no meio da rua, ali, frente a frente com quem passa, não há estúdios ou galerias. Essas são feitas a céu aberto. Há, por isso, “um contacto permanente”, de crítica, de elogio, de calor. Outro dos projetos mais emblemáticos — e que simboliza o espírito comunitário do Wool — é o Lata 65. A arte urbana foi ter com a população mais idosa, chegando a “mais de 600 alunos, entre os 65 e os 102 anos, com 48 ações realizadas em 5 países onde participaram médicos, professores, agricultores ou artistas plásticos”, lê-se no livro comemorativo. Dessa ideia surgiram movimentos e projetos como o “Graffiti Granarchists”, em Aberdeen, na Escócia, de malta mais velha que tem desenvolvido trabalho com escolas.

Com todas estas iniciativas, falta olhar para o apoio político e financeiro. E aí, Lara Seixo Rodrigues, não sendo negativa, é pragmática. Nem tudo correu bem. O Wool começou com pequenos apoios da DGArtes, atravessando uma temporada sem financiamento público para logo depois voltar a tê-lo, sendo que a autarquia da Covilhã também entrou, a espaços, no desenho do projeto. O festival foi contando com a iniciativa privada, da hotelaria à restauração, e, com um destaque cada vez maior, viu-se metido no jogo político da região. “Numa das eleições o Wool transformou-se numa arma política. Iam apoiar o festival e depois não aconteceu. Nessa altura, a comunidade revoltou-se bastante. A partir daí, percebeu-se que o projeto tinha muito peso, mas ainda não se tira o devido partido. É mais fácil perceber-se o seu real poder fora da Covilhã como instrumento de transformação do que dentro”, conta Laura Seixo Rodrigues.

Em oito dias de festival, o Wool conta com alguns “pesos pesados” da arte urbana. Logo à cabeça está Cinta Vidal, espanhola, das mais prestigiadas artistas do mundo que traz uma obra bem a caminho do centro da cidade. Depois de várias tentativas da sua vinda e com cancelamentos à última hora, o desejo foi cumprido em 2022. Outro dos nomes sonantes é Reskate, um coletivo ibérico, formado por Javier de Riba e Minuskula que vão olhar para a sustentabilidade e a transição energética, um dos seus temas mais recorrentes, onde se envolvem com a poesia e outdoors antigos. Na Covilhã vão pegar na exploração de lítio, um dos tópicos mais controversos em Portugal neste momento. Falta ainda falar de Nuno Sarmento, ilustrador e desenhador português, que foi desafiado a construir um rolo de desenho de 26 metros com dezenas de obras de artistas que passaram pelo Wool. Estará exposto na Covilhã na ponte pedonal da ribeira para toda a gente ver. E claro, Mantraste, artista visual e ilustrador, que terá um workshop sobre a relação entre tapeçaria e uma nova Covilhã, que estará em exposição na Galeria António Lopes.

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