“Uma coincidência feliz”, é assim que António Preto, diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, define a exposição “Luz e Sombra”, que inaugura esta quarta-feira, 22 de junho, no Porto. Na mesma altura que França conhece uma faceta menos mediática do cineasta, a de fotógrafo, Serralves recebe, 13 anos depois, a obra da fotógrafa, cineasta e artística plástica francesa, Agnès Varda. “Há uma proximidade no percurso de ambos, Manoel de Oliveira tirou fotografias entre as décadas de 30 e 50, Varda começa precisamente por essa ser fotógrafa e em 1956, durante uma passagem por Portugal, tira cerca de 100 fotografias no Porto, Lisboa, Nazaré, Évora ou Póvoa de Varzim, muitas delas a cores, que serão publicadas integralmente pela primeira vez no catálogo desta exposição.”
Em 2009, Agnès Varda passou por Serralves à boleia da Festa do Cinema Francês do Porto, onde apresentou “Les Plages d’Agnès”, um filme autobiográfico, e conheceu pessoalmente o realizador Manoel de Oliveira, primeiro numa conversa no auditório e um dia depois num encontro mais informal no jardim. São precisamente as imagens recolhidas pela artista desse momento, usadas na série televisiva “Angès de ci lá Varda” (2011), que são projetadas no arranque desta mostra.
Num diálogo curto, ambos falam sobre a solidão no processo de criação e a existência de anjos de guarda, até que Manoel de Oliveira faz de espadachim e Varda interroga-se sobre com quem ele se debatera. “Contra o destino”, responde. Em seguida, o cineasta, na época com 102 anos, interpreta Carlin Chaplin, com o dedo indicador no buço, chapéu na cabeça, bengala na mão e uma coreografia exemplar, “recordando os primórdios do cinema”.
Depois passa a sua bengala a Agnès e pega na sua câmara de filmar, comprada durante uma viagem ao Japão e que a acompanha quase sempre, e os pingos da chuva prevalecem nas imagens que capta. “O dia em que Manoel de Oliveira está a filmar-me é um dia feliz”, diz Varda sorrindo, acrescentando, com humor, que o banco onde se senta com o realizador e a sua mulher tem 276 anos em cima. “Este duelo e esta troca de armas é um preâmbulo da exposição. Ambos exploram e reinventam o documentário, mas também o lado mais cómico e de fantasia”, sublinha o curador.
Também o seu autorretrato diante de uma pintura de Gentile Bellini (1962) marca o início do percurso expositivo, onde a sua expressão e corte de cabelo curto se funde e confunde com os perfis masculinos, rígidos e austeros. “Ao longo do seu trajeto como cineasta, a causa feminista está presente, afinal, é a única realizadora associada à emergência do movimento Nouvelle Vague, foi uma mulher numa profissão masculina, onde as mulheres apareciam exclusivamente em frente à câmara de filmar e geralmente com um papel muito secundário”, recorda António Preto.
Uns metros à frente, uma sala luminosa mostra a instalação “Uma cabana de cinema: A estufa da felicidade” (2017), onde a estrutura de uma cabana é construída com 2500 metros de película de filme 35 milímetros, “um material obsoleto, considerado lixo, que aqui dá a ilusão de ser um imenso vitral numa referência clara ao interesse da artista por arte antigo”. O filme retratado nos milhares de frames que forram esta cabana, e cujos excertos são projetados numa parede, chama-se “Le Bonheur” (1964) e conta a história de um casal com dois filhos a brincar num jardim ao som de Mozart, simbolizando o retrato típica de uma família feliz. A certa altura, o homem comunica à mulher que tem uma amante e esta aceita aparentemente a situação, mas mais tarde morre afogada e fica no ar a dúvida se é assassinada ou se suicida.
“É uma visão negra e até irónica do que pode ser o casamento, as relações amorosas e mesmo o poliamor”, explica o curador, acrescentando que no interior desta cabana da felicidade, coberta com película de filme, encontram-se girassóis artificiais, uma prova de que Varda era uma artista provocadora e cheia de contradições, capaz de desafiar dogmas e estereótipos.
Numa outra sala, mais escura e sombria, é possível conhecer a estreia de Agnès no mundo da arte contemporânea com a peça “Patatutopia” (2003), que surgiu na sequência da realização do documentário “Les Glaneurs et la Glaneuse” (2000), onde acompanhou de perto o trabalho de respigadores e constatou que por um ano são deitadas ao lixo toneladas de batatas por não corresponderem às normas exigidas pelo mercado, mas foram as batatas em forma de coração que mais a impressionaram.
Durante algum tempo observou-as, filmou-as e fotografou-as em vários cenários, em cima de copos ou amontoadas em dispensas, e presenciou o seu processo de envelhecimento, onde a casca fica mais enrugada e vários rebentos vão grelando numa espécie de renascimento. A artista relaciona este fenómeno, visível através de três telas de grande formato, onde no centro o batimento cardíaco é simulado, com o próprio envelhecimento humano, filmando também a pele das suas mãos, igualmente enrugadas, ou o seu cabelo branco.
“Ela monumentaliza algo que é modesto, como o envelhecimento das batatas, e desvaloriza algo com interesse, fá-lo em dois impulsos contraditórios, mas ricos e cheios de contrastes. O próprio título da exposição [‘Luz e Sombra’] revela isso mesmo, por um lado ela celebra incondicionalmente a vida, colorida, festiva e com uma liberdade quase infantil, mas ao mesmo tempo tem uma dimensão reservada, sombria e uma bipolaridade percetível no próprio espaço, em que vamos de uma sala hiper iluminada para uma muito escura.”
A exposição está patente na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, em Serralves, até 22 de janeiro de 2023, integra instalações representadas pela primeira vez em Portugal e será acompanhada e complementa com uma retrospetiva de 20 filmes, entre longas e curtas metragens, a partir de 18 de setembro.