Os últimos quilómetros percorridos de forma isolada por Marc Soler na véspera, que tiveram sucesso pela desorganização a 800 metros de um grupo perseguidor que se perdeu na tática de quem ia ou não para a frente, foram como que um alívio para muita gente. Logo à cabeça para o próprio, que voltou a ganhar uma etapa da Vuelta dois anos depois. De seguida, para a UAE Emirates, que tinha uma espécie de one shot em busca de uma vitória que permitiria completar o quadro de triunfos nas três grandes voltas em 2022 e só precisou de uma tentativa para lá chegar. Por fim, para o próprio ciclismo espanhol, que quebrou um jejum de 668 dias e 121 etapas sem uma única vitória em grandes voltas. A festa foi mais que muita.

UAE Emirates e Espanha tiveram o grande dia ao Sol(er), Rudy Molard ganha liderança a Roglic na quinta etapa da Vuelta

“Levava o ano todo a lutar pela vitória e depois de uma fuga tão grande e de muito nível era uma grande ilusão. Só consegui mesmo festejar nos últimos 300 metros mas nem acreditava”, comentou após cortar a meta o espanhol que esteve sete anos na Movistar mas saiu este ano da sua “zona de conforto”. “O Matxin ligou-me e convenceu-me, deixou tudo muito claro. Queria que fosse um apoio do Tadej [Pogacar] e que tivesse as minhas oportunidades em provas de uma semana mas as coisas não me estavam a sair. Por isso, é uma vitória reconfortante”, acrescentou, contando ainda um episódio que mostrou bem a ligação que deixou na equipa espanhola: na primeira passagem pelo Alto del Vivero a UAE Emirates não tinha o seu carro na frente e foi a Movistar que lhe deu uma garrafa de água numa altura em que necessitava.

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“Estou apaixonado pelo Soler ciclista. É um corredor que me encanta pela forma que tem de competir, pelo talento e pela classe que tem. Para mim é alguém com muita classe que demonstrou que pode ganhar. Não o convertemos num vencedor aqui porque já antes tinha ganho coisas. Perdeu demasiado tempo na etapa da Laguardia mas das coisas negativas também se podem tirar outras positivas. Por exemplo, pode lutar por triunfos como este ou estar mais tranquilo quando lhe tocar ajudar o seu líder João Almeida, sem ter de estar dependente de entrar na meta para não descolar”, destacou Joxean Fernández Matxín, um dos técnicos da UAE Emirates e principal responsável pela sua contratação no último ano.

A festa entretanto terminou, até porque esta quinta-feira haveria a primeira etapa de alta montanha com saída de Bilbau e chegada a Pico Jano. E era a partir de agora que se veria se o corredor português teria ou não de pagar a “factura” pelo esforço despendido por Marc Soler na tirada inicial no País Basco, sendo que os dois primeiros dias de média montanha tinham apenas “arrumado” Ethan Hayter entre os principais nomes apesar das diferenças em alguns casos já significativas de alguns candidatos que foram marcadas no contrarrelógio por equipas em Utrecht no primeiro dia da competição. Como ponto de partida, e tirando os quatro primeiros da geral que saíram do sucesso da fuga em Bilbau, João Almeida estava a 53 segundos de Roglic e atrás também da armada da Ineos, de Remco Evenepoel e de Simon Yates.

O dia começou de novo com um ritmo altíssimo na primeira hora e com mais um grupo de dez fugitivos a tentar a sua sorte como na véspera e com um português, Nelson Oliveira da Movistar, a sair com Jan Bakelants (Intermarché Wanty), Mark Padun (EF Education), Rubén Fernández (Cofidis), Marco Brenner (Team DSM), Xandro Meurisse (Alpecin), Darío Cataldo (Trek), Fausto Masnada (Quick-Step), Kaden Groves (BikeExchange) e Xabier Mikel Azparren (Euskaltel-Euskadi). A vantagem não demorou a passar para os mais de quatro minutos, desta vez com a Groupama de fora na tentativa de manter a camisola vermelha de Rudy Molard pelo menos por mais um dia, algo que no plano teórico seria difícil. Ainda assim, e por Bakelants ir na fuga, foi a equipa francesa que puxou o pelotão para manter a diferença.

Apesar desse esforço da Groupama, a fuga conseguiu mesmo chegar aos seis minutos de vantagem, o que colocava de forma virtual Bakelants na liderança da classificação geral. As principais equipas, essas, iam seguindo o seu ritmo sem grandes preocupações mas com essa garantia de que na altura da verdade teriam na frente os principais elementos para lutar pela etapa e pela camisola vermelha. Depois, entre a chuva e o frio que fez com que alguns corredores puxassem do colete, foram vários os elementos com problemas nas bicicletas entre Evenepoel, Sam Bennett, Juan Ayuso ou Tao Geoghegan Hart, com a fuga a estar nos cinco minutos quando faltavam 60 quilómetros para a meta e quase todas as equipas tinham sofrido pequenos contratempos que foram depois resolvidos sem aparente reflexo no resto da etapa.

Os perigos eram demasiado evidentes com o piso molhado, com Carl Haegan a ser o corredor que ficou em maiores dificuldades numa queda que envolveu vários elementos. E foi isso também que impediu que Mark Padun brilhasse ainda mais como figura do dia: na subida a Brenes, o ucraniano da EF Education atacou, chegou a ter quase dois minutos de vantagem sobre Masnada e Rodríguez (que ficaram como resistentes da fuga) mas perdeu mais de um minuto na descida por todas as cautelas que tinha de manter. Ainda aguentou um pouco mais, até porque Masnada e Rodríguez desceram para um grupo de 30 elementos que estava na perseguição da cabeça da corrida mas que foi demorando a decidir quem atacava.

Chegavam os últimos dez quilómetros, começavam os ataques. E que ataques: primeiro foi Simon Yates, com resposta de Pavel Sivakov; a seguir foi Remco Evenopel, com resposta de Primoz Roglic. Jai Hindley, que era o único corredor da Bora, já sentia dificuldades tal como Richard Carapaz, João Almeida começava a descolar tal como Mikel Landa ou Valverde. A mais de sete quilómetros, até Roglic cedeu, com Evenepoel a levar na roda apenas Enric Mas, Sivakov a assumir-se como o melhor da Ineos, Juan Ayuso a assumir a equipa da UAE Emirates passando a concorrência com Almeida a ficar no grupo de Rudy Molard a cerca de 30 segundos do companheiro de equipa quando faltavam menos de cinco quilómetros.

Jay Vine, australiano da Alpecin, estava na frente da corrida, Evenepoel e Enric Mas estavam a pouco mais de 20 segundos, Ayuso seguia a 42 segundos e havia depois mais dois grupos de interesse, um primeiro com Roglic a tentar atenuar um dia muito complicado que podia deitar tudo por terra tendo três elementos da Bora consigo (sendo que a diferença para Evenepoel já era de um minuto a dois quilómetros do final da prova) e um segundo onde rodava João Almeida mas com o português a conseguir colar na frente, de novo no registo que ficou célebre mais uma vez no último Giro: não conseguindo responder da mesma forma aos ataques, colocou o seu ritmo a gasóleo, foi regular e reentrou de novo nas contas.

De forma discreta mas decidida, a etapa já não ia fugir a Jay Vine, até porque Remco Evenepoel já tinha a sua vitória de ter conseguido “afogar” Roglic e terminou na segunda posição a 17 segundos deixando Enric Mas para trás. Juan Ayuso acabou na quarta posição a 56 segundos, seguindo-se o grupo onde estava Roglic que passou a 1.40 de Vine com João Almeida a conseguir agarrar-se até ao final nesse lote quando a situação chegou a estar bem mais tremida, o que permitiu que entrasse pela primeira vez no top 10.

Assim, Remco Evenepoel assumiu a liderança da Vuelta com 21 segundos em relação a Rudy Molard (que ao contrário de João Almeida não aguentou o ritmo e caiu mais um bocado) e 28 de Enric Mas. Roglic é agora quarto a 1.01 do belga, tendo atrás de si Juan Ayuso da UAE Emirates a 1.12. Sivakov, Geoghegan Hart (1.27) e Carlos Rodríguez (1.34) são os melhores da Ineos, com o top 10 da geral a fechar com Simon Yates (1.52) e João Almeida (1.54), a 42 segundos do espanhol e companheiro de equipa. “Como vai ser daqui para a frente? Vamos ver, o João [Almeida] tem mais experiência do que eu mas vamos ver como é que as coisas ficam a partir daqui”, comentou no final da etapa Ayuso sobre a liderança da equipa. Hindley e Kelderman estão logo atrás mas alguns potenciais candidatos deram um passo atrás ficando fora do top 15 como Richard Carapaz, Sergio Higuita, Alejandro Valverde, Pozzovivo ou Mikel Landa.