A antropóloga Chiara Pussetti, coordenadora de um projeto sobre a busca pela perfeição, foi durante a investigação convidada em centros clínicos e estéticos a mudar o corpo e até lhe sugeriram que era divorciada porque não fez um restringimento vaginal.

Chiara Pussetti investigou nos últimos cinco anos a prática do melhoramento humano em Portugal, no âmbito do projeto Excel — Em busca da Excelência, desenvolvido por um grupo multidisciplinar de investigadores do Instituto de Ciências Sociais (ICS) e da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de Lisboa, que coordenou.

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Em entrevista à agência Lusa, na véspera da inauguração da exposição “Be fu**ing perfect — The Pursuit of Excellence”, que assinala o final do projeto, e da qual também é curadora, Chiara Pussetti apresentou a sua Barbie, uma das bonecas expostas na mostra e que contam as experiências de várias pessoas sobre os seus corpos.

Esta é a Barbie gorda. Eu sou a Barbie gorda claramente, porque tenho ancas, rabo e coxas”, disse a antropóloga de origem italiana.

Para responder ao desafio, Chiara Pussetti pensou nos cinco anos de pesquisa para o projeto Excel e como os contactos que teve em centros clínicos e estéticos condicionaram a imagem de si própria.

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“No momento em que eu entrava nas clínicas, como investigadora, como antropóloga, eles também viam em mim uma potencial cliente“, contou.

Uma parte significativa da conversa era sobre a experiência profissional dos médicos, no âmbito da investigação, mas a outra parte era a tentar vender-me um produto”, referiu.

A antropóloga relata o que lhe disseram: “Uma mulher com o seu trabalho, uma mulher ainda bonita, não se quer valorizar, estar bem? Então porque não faz algo para evitar as rugas? Então porque não faz algo para eliminar qualquer tipo de flacidez?”.

Uma mulher ainda tão bonita nunca pensou numa lipossucção para eliminar esta parte mais ampla do seu corpo e garantir uma maior harmonia? Uma mulher tão bonita nunca pensou que poderia, por exemplo, fazer mesoterapia, infiltrações para queimar qualquer tipo de celulite ou de imperfeição, ou lazer, porque ainda tem estrias da gravidez? Uma mulher tão bonita nunca pensou no levantamento dos glúteos?”, contou.

A antropóloga recordou um desses contactos em que um médico, que apenas a viu vestida, lhe perguntou se era mãe, ao que ela respondeu que sim, de uma filha prestes a fazer 19 anos.

Ele perguntou-me se o parto foi cesariana, porque se tivesse sido poderiam cancelar com o laser qualquer marca da cicatriz. Eu disse que não, que foi parto natural. E ele perguntou: E depois do parto natural, não fez um restringimento vaginal para o prazer do seu marido? Eu disse que não, que não pensei nisso e que por acaso sou divorciada. Ao que ele respondeu: Ora bem, está divorciada porque não fez restringimento vaginal”, contou.

A dada altura, Chiara começou a pensar que todo o seu corpo estava “profundamente errado aos olhos de uma indústria que vende a perfeição”, bem como tudo o que considera que são as suas características comuns.

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“Aos olhos deles, era algo que teria que ser imediatamente alterado, porque era um defeito”, disse.

E prosseguiu: “A experiência motivou-me a desenhar (na Barbie) tudo o que eles me propuseram fazer, incluindo na vagina. Ao mesmo tempo, desenhei o que eu decidi fazer que, por acaso, são tatuagens que tenho em muitas partes do meu corpo, que são uma forma de contar a minha história”, afirmou.

Poderia ter feito os peitos mais altos, tirar a gordura das coxas? Sim, porque não? Mas temos que ter consciência. O que é chamado de defeito pelo médico é realmente um defeito para mim? É um defeito à luz de uma hegemonia, que é normativa. Acho que é interessante aprendermos a desconstruir estas hegemonias e a amar o nosso corpo”.

“Se eu tivesse que usar um léxico mais académico, diria que é exatamente o biopoder, de que fala Michael Foucault. Não me diz que estou errada, mas está a seduzir-me e a criar esse desejo, que é uma forma insidiosa de poder”.

Exposição irónica para mudar sociedade em que a menina gorda nunca é a protagonista

A Barbie de Chiara Pussetti é uma das várias bonecas que constam da exposição que é inaugurada quinta-feira na Galeria Óriq 2020, em Lisboa, que apresenta várias peças alusivas à busca pela perfeição, como próteses de silicone, cremes branqueadores, injeções de botox, entre outras, assim como fotografias da artista letã Evija Laivina e da artista australiana Jessica Ledwich que, pelos seus trabalhos sobre a violência latente nos ideais de beleza, receberam vários prémios.

Nesta exposição irónica “Be fu**ing perfect — The Pursuit of Excellence”, que marca o final do projeto EXCEL e aborda a busca pelo melhoramento humano, “a menina gorda nunca será a protagonista”, diz Chiara Pussetti.

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“Queremos brincar de forma irónica com a materialidade destes objetos, para nos lembrarmos que a beleza não é algo fútil, não é algo superficial”, frisou, rodeada de Barbies, ícones de uma beleza que se promove branca, magra, alta e loura.

“As barbies negras, as barbies com características asiáticas, indianas são as amigas da Barbie, não são a Barbie, a Barbie é uma”, indicou.

Chiara Pussetti dá o exemplo da Barbie para mostrar “o que acontece todos os dias nos campos das indústrias, das profissões ligadas à beleza”.

Existe atualmente um corpo normativo, um corpo norma, um padrão hegemónico de beleza que é claramente um padrão ligado a uma ideia de juventude, de corpo magro, especialmente de corpo europeu ou eurocentrado, no sentido de um corpo branco”, observou.

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E aponta as agências de moda e toda a indústria que produzem os sonhos, as capas de revista e os programas de televisão e que escolhem sempre a atriz “bonita”.

Vemos que se replica sempre uma imagem de perfeição: Jovem, magra, branca e alta e que não encaixa, por exemplo, a cor da pele diferente, feições ligadas a outras origens étnicas”.

A antropóloga considera que existem dois caminhos para quem se depara com estes factos. O caminho fácil e mais percorrido, mas também o mais complexo e mais escorregadio, é “o caminho da reprodução de um imaginário vigente”.

O caminho mais fácil é tentar reproduzir uma beleza, um corpo negro que o olhar branco aprecie, um corpo negro apetecível para uma estética que continua a ser branca e um corpo negro que venda num mercado cujo consumidor é branco”, referiu.

E há o caminho mais difícil, pelo qual a investigadora anseia e luta, que é o da “descolonização da estética”.

“Quando falo de descolonizar a estética falo da educação; e educação significa começar com as escolas, as crianças, introduzindo nos livros da escola mais cores, mais diferença, mais possibilidades, mostrando que existe beleza, encanto e que existe um mundo de possibilidades ao mesmo nível e que cada um se poderia reconhecer e se sentir à vontade e se sentir apreciada numa dessas imagens”, disse.

A antropóloga sublinha que não é só uma questão de cor de pele, “é uma questão também do tamanho do corpo”.

Basta ver uma série de televisão. A menina gorda nunca será a protagonista, a menina gorda é boa amiga, a menina gorda é a que escuta. A menina gorda é, no máximo, simpática e muito inteligente”.

E acrescentou: “A menina gorda não é a protagonista, a não ser que haja, como em muitas séries, aquela intervenção de fora, pela qual solta os cabelos, tira os óculos, veste, emagrece e mais não sei o quê e se torna outra vez um corpo hegemónico”.

O que Chiara Pussetti deseja é que, no futuro, quem opte por uma intervenção estética, como uso de botox para não ter rugas, o faça consciente que está a replicar um padrão e que o que faz não é uma obrigação, mas sim uma escolha.

Debates, tertúlias e outros eventos constam desta fase final do projeto Excel, estando prevista a participação de investigadores, influenciadores de opinião e especialistas sobre o tema, nacionais e internacionais.