Em 2010, David Fincher parecia antecipar-se àquilo que depois se transformou em tendência: contar as histórias de start-ups, unicórnios, empresas que encheriam o imaginário e o presente das duas primeiras décadas do século XXI – e daí para a frente, supõe-se. “A Rede Social” era uma história de criação. Se tivesse sido contada dez anos depois, seria bem diferente. Neste 2022 têm chegado inúmeras outras histórias de criação – e respetivos falhanços – de empresas com o mesmo ímpeto: a Theranos em “The Dropout” (Disney+), a WeWork em “WeCrashed” (Applet Tv+) e a Uber em “Super Pumped: The Battle For Uber” (HBO Max). Estas três histórias têm uma coisa em comum: a atenção desmesurada nos seus criadores. Com “The Playlist” a Netflix joga a sua cartada nestas história de big tech, com uma produção sueca dedicada ao Spotify.
Entre a “A Rede Social” e 2022 há também “Silicon Valley” (HBO Max), série que esteve no ar entre 2014 e 2019, sobre uma empresa ficcional que tentava conquistar o lugar no centro tecnológico do mundo. Era menos uma história de sucesso e mais uma de erros, falhas e perigos até se chegar a um certo patamar de grandeza. Pela forma como abordava os diferentes estádios do negócio, é a ficção que melhor se compara a esta “The Playlist”. Os seis episódios são descentrados do seu criador, Daniel Ek, e tentam contar a história através de diferentes pontos de vista (incluindo um detalhe nem sempre vencedor de, no final de cada episódio, surgir uma personagem com um “não foi bem assim que aconteceu”).
Se, por um lado, é agradável por não ser mais uma versão da história de uma big tech em volta de um ego insuflado, por outro é pouco clara a missão de “The Playlist”. Em nenhum momento parece uma série de propaganda do Spotify, inspirada no livro Spotify Untold, de Sven Carlsson e Jonas Leijonhufvud. O objetivo, durante grande parte da série, parece ser o de convencer o espectador dos esforços da Spotify em fazer vencer a sua ideia: de mudar a indústria musical, de provar de que a sua alternativa seria melhor quando comparada com a realidade de então – em 2006 – que era a da pirataria, sobretudo através do site de torrents sueco The Pirate Bay.
[“veja aqui o trailer de “The Playlist”:]
A história conta-se por diferentes perspetivas: a do criador Daniel Ek (Edvin Endre); a da indústria musical, por via de Per Sundin (Ulf Stenberg), diretor executivo da Sony na Suécia; através dos olhos da advogada Petra Hansson (Gizem Erdogan); o ponto de vista do programador Andreas Ehn (Joel Lützow); do investidor e co-fundador da Spotify Martin Lorentzon (Christian Hillborg); e da artista Bobbie T (Janice Kavander), personagem fictícia que acaba por ser o parente pobre desta aventura.
Há vários momentos que se repetem, com poucas ou nenhumas alterações. Contudo, estão tão intrincados no ponto de vista que pretendem representar que nunca estão realmente a mais, não são fillers ou merecedores de fast forward. Há opções estilísticas que funcionam muito bem e que dão uma boa dinâmica à representação de poderes na série, como a escolha do mesmo cenário – um corredor, o mesmo corredor sem nenhuma característica em particular – para representar o “inimigo” (seja as discográficas ou sociedades de advogados) ou os momentos de festa e celebração, que acontecem quase sempre no mesmo local. A opção resulta de duas formas: por um lado, a associação por familiaridade; por outro, a ideia de continuidade e avanço narrativo entre episódios (mesmo que, nos primeiros, isso não aconteça verdadeiramente).
A série apresenta-se verdadeiramente nos dois primeiros episódios, os três seguintes explicam os conflitos internos que se desenvolveram com o crescimento da ideia e o último é um falso pretexto de redenção. O balanço é positivo, a trama está equilibrada, mas há um esforço irritante para passar uma ou duas ideias paternalistas sobre o Spotify. Um é o demonstrar quase patriótico de que a Suécia é um país inovador e à frente em alguma tecnologia (Skype, Minecraft, Spotify e até o The Pirate Bay nasceram lá), sendo o Spotify a grande empresa europeia na área da tecnologia. O outro é uma ideia no mínimo questionável: a de que no Spotify se pode encontrar toda a música. É um argumento que começa a ser vendido logo no primeiro episódio e que se repete, pelo menos uma vez, em cada um dos seguintes. Não só não é verdade, como promove uma ideia limitada do que é o acesso à música e de como pode ser usufruída: será como dizer “se não está no Spotify, não existe”.
Talvez seja uma hipérbole, talvez um argumento para justificar o episódio final, um em que a série deixa a base narrativa — as origens e as batalhas do Spotify — para avançar na futurologia, situando-se em 2024/2025 e tendo como centro a personagem fictícia Bobbie T, presente desde os primeiros momentos, como uma antiga colega de escola de Daniel Ek, a quem este promete que o Spotify irá ajudar a chegar a outros patamares. Mais de década e meia depois, o projeto não se cumpre e Bobbie T torna-se numa involuntária defensora dos direitos dos artistas.
Embora aborde a problemática do monopólio destas plataformas e de algumas dificuldades do Spotify no mercado norte-americano (o livro em que a série se inspira dedica muitas das suas páginas a essa história), o último episódio parece redenção numa brincadeira infantil de futurologia. Durante cinco episódios vende-se uma ideia vencedora, disruptiva; no último as consequências são esplanadas de forma leviana: um gesto de “bom, pelo menos falámos nisto”. Não há problema em ser as duas coisas, mas o movimento de futurologia é um pouco cobarde quando tantas lutas já se travam no presente. E com tantas consequências à vista. “The Playlist” é um bom desenjoo das séries em volta das big tech e do formato norte-americano sobre o género, mas falha redondamente na forma como faz o seu momento de autoanálise.