Foi num destes sábados cheios de sol que Lisboa teve em outubro que decidimos ir à recém-reaberta Cervejaria Trindade, em missão bem portugaise. Usando as palavras de uma das pessoas com quem fui, a atitude era mesmo “deixa cá ver como aquilo ficou depois das obras”. Justement, a maioria dos clientes eram portugueses, o que demonstra a devoção que existe aos sítios emblemáticos do país. Devo dizer que depois de um ano de obras, à primeira vista está tudo lindo, impecável, magnifique, como um par de sapatilhas por estrear. Entrando lá dentro é como estar numa capital europeia rica. Infelizmente, não parece que estamos na Trindade, em Lisboa. É um problema? É cedo para dizer.
Chegamos sem marcação (é uma cervejaria, mon dieu) e avisaram de imediato que da próxima vez é melhor prevenir. A velha sala à entrada, a dos painéis de azulejos maçons, tem agora um balcão no meio e funciona sobretudo como uma petiscaria, dizem-nos. Fomos andando para a outra sala, incrível, com um pé direito altíssimo e um teto em abóbadas impressionante revelado durante as obras, cheia de mesas de madeira castanho escuro dos lados e ao meio, com um bar em fundo. Li no menu que a sala é de 1946, decorada com painéis de azulejos originais de Maria Keil e naquele dia estava cheia de gente entretida a comer a conversar, como deve ser.
Dado o sol de Lisbonne, preferimos uma terceira zona, dos claustros da zona exterior, onde repousavam várias mesas, umas de madeira, outras de metal, escolhidas com gosto. Sentamo-nos protegidos por uns gigantescos chapéus de sol eficazes e elegantes, numa área que tem tudo para ser um dia uma esplanada cheia de vida. Ao contrário das minhas amigas não sou decoradora, mas ali senti que ainda falta alguma ligação entre os vários espaços e ficou sempre aquela impressão que se sente quando mudamos de casa e ainda não se conseguiu aquele quentinho indispensável a um lar.
De um 1 a 10, o staff da Trindade merece 11. Já a carta, diria que alguém se esforçou demasiado e a equipa da cozinha ainda não consegue acompanhar a ambição, muito menos o que nos cobram pelos pratos, isso pareceu evidente a todos. O célebre bife da vazia (17,90) tem um bom tamanho e carne é tenra, mas chega quase frio à mesa, mergulhado num novo molho, com batatas à parte (temos direito a um acompanhamento), que nos dizem pelo aspeto e sabor que já tinham sido fritas há um tempo. E o novo molho é melhor que o anterior? Será a pergunta a fazer a alguém que não a mim, que a última vez que fui há Trindade ainda comprava CDs e não me recordo.
De qualquer modo, é preciso dizer que há qualquer coisa que não bate certo nos sabores. Se estivéssemos numa cervejaria, seria irrelevante, porque teríamos lá ido para afogar o pão no molho, beber umas cervejas e devorar frites, mas a nova Trindade quer ser mais do que uma cervejaria popular e tudo se torna mais complicado. Por exemplo, porque é que o pão é de trigo de barbela (2,40 por duas fatias, ótimo, assim tipo o da Gleba), quando uma cervejaria pede daquele pão branco de gente normal, em que arrancamos bocados com a mão, porque, insisto, é disso que o molho precisa? A questão é demasiado importante para que a larguemos aqui, dado que pelo menos para mim, as cervejarias dependem do fator APM. C’est bien vrai ça. Numa cervejaria, afogar o pão no molho (APM) é o teste concludente — não sei se há um curso no Le Cordon Blue só sobre isto mas devia haver. Na nova Trindade, a avaliar pela nossa mesa, a memória do molho antigo venceu o sabor do atualizado. Culpa do pão, culpa da receita, cada um dirá de sua justiça.
Há marisco, berbigão à bulhão pato (17,50), há lombo de bacalhau à Lagareiro (27,5), há bife tártaro (25,80) e mais uma série de escolhas apetitosas. O café é Delta (1,90) e a carta de vinhos (diz o meu amigo) tem coisas boas. Uma série de cervejas próprias ajuda a colorir o menu, mas no país em que ou é Sagres ou é Super Bock, interessarão aos estrangeiros, até porque são demasiado caras para se experimentar só por experimentar.
Excelentes os pastéis de bacalhau (2,20 cada) que pedimos como amuse bouche; decente a pequena salada que a minha amiga quis em vez das batatas e ótima a Sagres de pressão (2,25 cada), em bonitos copos personalizados (os pratos também podiam ser, mas isso significaria que estávamos numa cervejaria e por esta altura já devíamos ter percebido que não é isso que se pretende).
Na Trindade fizeram mesmo um esforço enorme para que não a confundam com uma cervejaria popular e não foi só carregando a sério nos preços (uma 7Up custa 3,15 e um sumo de laranja natural 4,10), foi também tendo coisas como sumo de laranja natural, talvez a prova final de que eu precisava para abrir os olhos de vez.
Uma tia complexa disse-me um dia que fosse o que fosse que eu sentisse ou quisesse, o melhor já passara. Na vida, dizia ela com a voz esculpida a cigarros, não fazemos mais nada a não ser andar em busca desse momento que ficou lá atrás e viver a sério, segundo esta tia solteirona que nunca dispensava um Pastis antes do jantar, é saborear o reviver do passado, a busca da memória suprema. Talvez seja. A discussão sobre o que é nostalgia, o que é histórico, o que é “legacy” (como dizem os americanos) vai longa, mas, com as teias de aranha, o estuque a esfarelar e os tijolos antigos, os fogões cheios de gordura incrustada, as mesas e cadeiras cheias de uso e meias coxas, a verdade é na renovada cervejaria Trindade foi-se também a atmosfera. O futuro é mesmo do futuro, a minha tia do Pastis é passado, fin d’histoire que a nova Trindade construirá a sua própria história.
A verdade é que nos últimos quinze ou vinte anos, a Trindade pouco mais era que un piège à touristes, um daqueles sítios onde os locais deixaram de ir, porque preferiam as novidades. Era barulhenta, agitada, e começava a ficar demasiado cara para o que propunha. Hoje é o local parfait para levar os colegas que vieram da Alemanha dar uma formação (desde que seja a empresa a pagar), aproveitando para contar (ou até inventar) histórias da Trindade de antigamente.
Já foi convento, sobreviveu ao terramoto, a incêndios e desgraças, a milhares de jantares de aniversários, amigos e estudantes e a milhões de outros almoços e jantares, agora é uma noiva ansiosa por casar com uma nova sinopse. Por enquanto namora com esta: “restaurante grande e renovado em capital europeia, que serve comida indiferente e não faz mal porque não é pela comida que se lá vai”.
No fim do nosso almoço e do oh là là quando vimos a conta, percebi que há coisas que sabem melhor com mesas tortas, toalhas de papel, barulho, confusão, cascas de tremoço no chão e empregados apressados e barrigudos. Molhar o pão no molho é certamente uma delas.
Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameîjoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.