“Não acredito que passemos à próxima fase, mas estamos aqui para lutar contra os prognósticos. Acontecem surpresas nos Mundiais e é essa a mentalidade que temos”. Vinte e quatro horas antes de defrontar a Argentina, no jogo de estreia do grupo C do Mundial do Qatar, Hervé Renard não escondia o objetivo, mesmo que poucos acreditassem nele: a Arábia Saudita queria deixar uma marca no torneio – como vencer uma das megas favoritas à conquista da Taça Jules Rimet -, mesmo que não consiga fazer mais do que três jogos no torneio.
Esta terça-feira, um dia depois das declarações, a seleção do maior país árabe do continente asiático tornou-se na primeira grande surpresa da competição e a vitória (2-1) frente à alviceleste capitaneada por Leo Messi veio aumentar ainda mais o legado do francês conhecido como “mago branco”, que vive a sua segunda experiência num Mundial aos 54 anos.
Pequeno nos clubes, gigante nas seleções
O percurso de Renard no futebol não começou no banco de suplentes. Tentou cumprir o sonho de ser futebolista e foi companheiro de Zinedine Zidane no Cannes. Segundo o ABC, o convívio com um dos melhores jogadores de sempre levou-o a perceber que não tinha qualidades para jogar à bola. Como técnico também se pode falar em duas versões da mesma pessoa: o Renard sem grande relevância a treinar clubes franceses de média e pequena dimensão e o Renard que não deixa de criar páginas históricas à frente de diferentes seleções.
Começou a carreira como treinador em 1999, no modesto Dracénie, de França. Um caminho, segundo o El País, que surgiu depois de trabalhar na recolha de lixo e a limpar edifícios. Demorou quase dez anos a chegar à Zâmbia, a primeira seleção que treinou. O seu mentor e o responsável por ter ido para África foi Claude Le-Roy, homem do futebol francês que também construiu carreira no continente africano. Estiveram juntos na seleção do Ghana, era Renard adjunto. O caminho separou-se em 2008, quando chegou o convite da Zâmbia.
“Aceita. Os mestres estão sempre preparados para serem superados pelos seus discípulos”, disse-lhe Le-Roy, segundo o El País. Na primeira passagem pela seleção, conquistou um terceiro lugar na Taça das Nações Africanas de 2009 (CAN). Saiu um ano depois, e o seu percurso inclui uma passagem por Angola, cargo que deixou por pagamentos em atraso. Voltou à Zâmbia e ganhou a CAN, em 2012, com uma equipa que não partia como favorita.
A seleção comandada por Renard derrotou, nesse jogo decisivo, a Costa do Marfim, repleta de craques como Didier Drogba ou Yaya Touré. Foi esta mesma seleção que foi treinar em 2015 – após uma passagem sem história pelo Sochaux – e o levou a entrar na história do futebol. Mesmo sem o antigo avançado do Marselha e do Chelsea, o melhor jogador costa-marfinense de sempre, a Costa do Marfim venceu a CAN nesse ano. E o francês passou primeiro selecionador de sempre a ganhar o principal torneio de seleções do continente africano duas vezes por duas seleções distintas.
Durante este percuso vitorioso, já surgia no banco de suplentes com a sua imagem de marca: calças (preferencialmente de ganga) e uma camisa branca. A alcunha “mago branco” junta os seus feitos futebolísticos com a sua indumentária sempre impecável.
Marrocos – outra história feliz – antes da Arábia Saudita
Tentou novamente a sorte à frente de um clube, desta vez o Lille, mas o futebol parece dizer a Renard que o seu destino são mesmo as equipas nacionais. Assim, em 2016, assumiu a liderança de Marrocos, com quem foi, pela primeira vez, a um Mundial dois anos depois. Mais uma vez, uma conquista história. No Mundial da Rússia (2018), cumpriam-se 20 anos desde a última vez que esta seleção tinha disputado uma fase final da prova.
Acabou por sair devido aos maus resultados na CAN de 2019 e surgiu o desafio atual. “O dinheiro não é pouco importante, mas também não é o motivo principal da escolha. Precisava de uma mudança, um desafio desportivo e, sobretudo, voltar a viver um Mundial”, disse, citado pelo El País, ao justificar a escolha pelos petrodólares da Arábia Saudita. Seja qual for o percurso nesta competição, já está pelo menos igualado o registo do treinador anterior, Juan Antonio Pizzi, no Mundial de 2018: uma vitória na fase de grupos.
As semelhanças com Jaime Lannister e a voz que passa a mensagem
Trabalho novo, “casa” antiga. Segundo o El País, vive em Dakar, no Senegal, por uma questão emocional. “Não podia viver em nenhum outro sítio que não fosse África”. Além disso, a cidade tem uma ponte aérea com a Arábia Saudita, cuja liga acolhe todos os jogadores que compõem a sua seleção. Foi também no Senegal que se apaixonou por Viviane, viúva de Bruno Metsu, treinador francês que venceu a CAN à frente deste país em 2002.
Alto e loiro, parece uma estrela de Hollywood – há quem o considere parecido a Nikolaj Coster-Waldau, o ator que interpretou Jaime Lannister na série “Guerra dos Tronos”. Não descura a forma física e costuma participar nas sessões de treino no ginásio com os seus jogadores. Fala três línguas: francês, inglês e espanhol. E, segundo o El País, acredita que parte do seu sucesso passa pela capacidade de motivar os jogadores que comanda: “Tenho uma voz que passa mensagem. Olho as pessoas nos olhos e falo claro”. Aparentemente, não está errado – e a vitória frente à Argentina prova-o.