Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

A terra divide-se em dois em Doha. De um lado do equador, é Deus no céu e Cristiano Ronaldo na terra. Do outro, é Deus no céu e Lionel Messi na terra. Hoje era o dia do segundo. Foi ontem, amanhã também será, hoje era ainda mais na estreia daquele que será o último Mundial do jogador que reivindicou nas últimas quase duas décadas um número (10), uma maneira de jogar que é cada vez mais rara, uma era. Agora que se aproxima a hora do adeus é que o mundo do futebol se apercebe o que significou aquela olá no Estádio do Dragão, quando o então miúdo canhoto com muito talento que era mais conhecido pelo contrato feito num guardanapo da mesa de um restaurante e pelo problema hormonal em criança fez a estreia nos seniores. E seja nas bandeiras, nos cartazes, nas camisolas, há uma ligação inevitável de 40 anos a Diego Maradona.

Foi em 1982, nessa fronteira do salto do Boca Juniors para o Barcelona no arranque da aventura europeia, que César Luis Menotti deu a chamada ao primeiro Mundial daquele que se tornou o grande mito do futebol de um país à parte de todos os outros nesta coisa da bola como é a Argentina. Não sendo um indiscutível, pouco ou nada podia fazer para evitar a eliminação na segunda fase, com derrotas frente a Itália e Brasil. Em 1986, aí, entrou no México apostado em conquistar o mundo e saiu de lá com a taça que simboliza essa mesma conquista. Em 1990, em Itália, quando já era um ídolo de Nápoles e conseguiu colocar parte do San Paolo a torcer contra os transalpinos por si, afastou a equipa da casa mas perdeu a final com a RFA. Em 1994, na quarta e última experiência, mostrou que os génios também podem ter pés de barro: ele caiu na fase de grupos devido a um caso de doping; a equipa caiu nos oitavos por causa desse caso de doping. Caía o jogador, ficava com contrato eterno a parte do mito numa fase em que Messi estava no Grandoli.

Agora, era a vez de o príncipe herdeiro, também ele com dotes divinos que chega às conferências de imprensa e começa a ser aplaudido e que coloca os próprios adeptos adversários a bater palmas quando aparece nos ecrãs, ganhar a única prova que lhe falta a seguir à quebra do jejum com a Copa América, tentando “vingar” a derrota nos penáltis nos quartos em 2006, a goleada nos quartos também com a Alemanha em 2010, a final perdida mais uma vez com a Alemanha em 2014 e o desaire nos oitavos com a França em 2018. Mas havia mais coisas em jogo, como o recorde do número de encontros em fases finais absoluto (de Matthaus) e argentino (de Maradona) ou o número de golos de um argentino (de Gabriel Batistuta), entre outros.

Como não poderia deixar de ser, o astro deixou a sua marca logo a abrir com um golo de grande penalidade que aumentou a série de partidas consecutivas a marcar para cinco e permitiu que se transformasse no primeiro argentino a marcar em quatro edições do Mundial, passando a ser o quarto melhor marcador da Argentina em fases finais atrás de Batistuta, Maradona e Stabile. De nada valeu. E o jogo passou de mais complicado do que se pensava para um autêntico flop com muito mérito saudita à mistura. Aquilo que parecia ser um treino contra os coletes verdes tornou-se uma lição de querer, vontade e humildade.

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Não se podia dizer antes do jogo que a Arábia Saudita fosse propriamente uma má equipa. Tem jogadores com mais dificuldades de disfarçar algumas carências técnicas, não apresenta propriamente grandes estrelas ou não estivessem todos os elementos na liga nacional, mas é organizada, competitiva, capaz de ocupar espaços e até corajosa pela forma como arriscou a defesa em linha que foi anulando várias iniciativas dos sul-americanos. No entanto, e quase de forma natural, foi a Argentina que conseguiu agarrar no encontro sempre que a bola entrava no último terço em Messi: viu Al Owais travar o primeiro golo logo no arranque numa segunda bola ganha na área (2′), marcou de penálti após falta sobre Paredes num livre lateral (10′), iniciou um hat-trick de golos anulados até ao intervalo que começou aos 22′, prosseguiu aos 28′ com Lautaro Martínez e fechou aos 35′ com mais um de Lautaro, neste caso após mais uma assistência do número 10.

Na segunda parte, bastaram apenas dez minutos para tudo mudar. E mudar de forma radical, com o Lusail que vai receber a final praticamente a cair com o barulho ensurdecedor feito pelos sauditas (para se ter uma ideia do que estava em causa, dois adeptos com quem fomos a falar ao estádio diziam que um empate sem golos era um resultado histórico): Saleh Al-Shehri, avançado que passou pelo Mafra e pelo Beira-Mar e que está agora no Al Hilal, fez o empate aproveitando as fragilidades defensivas de Romero no centro da defesa (48′) e Salem Al-Dawsari, a grande estrela da equipa também do Al Hilal, ganhou uma segunda bola descaído sobre a esquerda para rematar ao ângulo e fazer o 2-1 (53′) perante a falta de reação argentina. A reação veio do banco, com Lisandro Martínez, Enzo Fernández e Julián Álvarez a saltarem para o campo, Tagliafico, Messi e Álvarez estiveram perto do empate mas a grande surpresa estava mesmo feita.

A pérola

  • A exibição de Al-Owais não teve propriamente muitas defesas mas contou com intervenções naqueles períodos decisivos, nomeadamente uma logo a abrir a remate de Messi e outra de Tagliafico que entrará para o top das melhores da primeira ronda do Mundial, entre um total desespero, mãos na cabeça e lágrimas pelo choque com o joelho na cabeça de Al-Shahrani que deixou o defesa em muito mau estado e a levantar grande preocupação. No entanto, e até como forma de homenagear a capacidade de redenção da Arábia Saudita na segunda parte (embora não tenha estado mal no primeiro tempo), o grande destaque vai para os adeptos, que a partir do momento que pereceberam que era possível e quebraram o estigma de jogar contra a Argentina do Deus Messi mereceram por completo o momento histórico.

O joker

  • Os jogadores sauditas não têm propriamente muita expressão a nível de futebol europeu e, quando têm, acabam por passar por clubes que não são os principais, como aconteceu com Saleh Al-Shehri. Seja pela falta de história, de cultura ou de oportunidades, não é normal. No entanto, isso não quer dizer que não tenham qualidade e Salem Al-Dawsari, que passou em 2018 por Espanha fazendo apenas um jogo pelo Villarreal, é um exemplo paradigmático disso mesmo: tem técnica, é inteligente a procurar os espaços, faz bem as diagonais de fora para dentro a partir da esquerda. Problema? Já tem 31 anos, o que lhe tira margem para sonhar com palcos muito mais altos. Mas a qualidade está lá toda, como se viu. E os centrais, sobretudo na segunda parte, mostraram que têm também muita qualidade e potencial.

A sentença

  • As contas são fáceis de fazer a partir de agora: 1) a Argentina tem agora duas “finais” com México e Polónia sem margem de erro caso queira chegar aos oitavos; 2) a Arábia Saudita, que surgia como a equipa outsider que dificilmente iria pontuar, está a dois empates ou uma vitória dos oitavos; 3) quem ganhar entre Polónia e México esta terça-feira dá uma grande salto a nível de perspetiva de passagem.

A mentira

  • O facto de as equipas sul-americanas só terem praticamente jogado a qualificação para o Mundial, sem grande margem para compromissos particulares que colocassem outro tipo de dificuldades a Scaloni (a goleada aos EAU é daquelas que não conta muito para o Totobola, tendo em conta que a Arábia Saudita é bem mais forte), foi escondendo questões que afinal são problemas não solucionados: Romero numa estrutura de dois centrais e não numa linha de três tem limitações, Rodrigo de Paul e Leandro Paredes ao mesmo tempo não acrescentam e Papu Goméz à esquerda é não aproveitar o que tem de melhor. Pior: depois de vários foras de jogo, o técnico nunca tentou colocar mais à esquerda Lautaro para fazer diagonais e aparecer nos espaços que Messi ganharia. Com isso, estagnou no plano ofensivo.