Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar
“A vitória é um estado de alma”. Não se pode dizer que a Bélgica não tenha o seu rasgo fora de campo. Ainda antes do Mundial, a promoção que a equipa fez com Filipe, num filme que começou com a visita do treinador Roberto Martínez ao palácio real e acabou com o Rei a dar indicações no treino a De Bruyne e companhia, foi um dos momentos com mais partilhas na antecâmara da competição. Agora, no jogo decisivo do apuramento para os oitavos frente à Croácia, a Federação foi buscar a famosa fotografia de Ronaldo e Messi a jogarem um jogo de xadrez para colocar o médio do Manchester City e Romelu Lukaku nas mesmas posições como que a pensarem na melhor forma de chegarem à vitória. Entendia-se, claro. A margem de erro era nula.
A vitória no arranque diante do Canadá disfarçou as lacunas da equipa, expostas por Marrocos numa partida onde os Diabos Vermelhos foram controlados como há muito não acontecia. E a tensão no balneário tornou-se mais latente, com Kevin de Bruyne a dar o mote numa entrevista ao The Guardian dizendo que a seleção era “demasiado velha para ir longe”, Vertonghen a dizer que “se a equipa atacou mal é porque pode ser velha”, Martínez a assumir problemas no grupo “normais numa família” e o L’Équipe a escrever que alguns jogadores quase chegaram a vias de facto, numa notícia que fez o técnico explodir em conferência.
“No balneário não se passa nada, só o treinador é que falou. Conversámos todo mas claro que não vou andar à luta com Vertonghen, ele é maior que eu! Os jogadores conhecem-me todos. Vertonghen perguntou-me se eu tinha dito isso sobre ele [rumores relacionados aos jogadores terem chamado “velhos” uns aos outros]. Eu ri-me e disse-lhe que já não é tão rápido. Ele concordou. Os meus companheiros conhecem-me, gosto de me rir”, relativizou Hazard. “Toda a gente gosta de seguir fake news que surgem em órgãos que nem são belgas. É uma lição para nós: estamos sozinhos, por conta própria, a lutar pelo que acreditamos e só espero que os verdadeiros adeptos possam estar ao lado da equipa”, salientou Martínez.
A Bélgica tentava reunir o melhor contexto para a redenção mas o adversário que tinha pela frente era talvez o pior para isso, com uma Croácia que empatou sem golos com Marrocos a abrir mas goleou de seguida o Canadá. Também os balcânicos sabiam que a margem era reduzida, naquele que poderia ser o último encontros em Mundiais e até na seleção de Luka Modric. A seguir ao Espanha-Alemanha, este era na teoria um dos encontros mais fortes e aguardados da primeira fase mas ao contrário do que se pensava não estava em causa o primeiro lugar mas sim a qualificação, com Marrocos a intrometer-se nas contas e a ter com o já eliminado Canadá uma autêntica final para chegar pela segunda vez na história aos oitavos. Os africanos não falharam, a Bélgica falhou. Lukaku falhou, muito. Este Mundial não era mesmo para “velhos”.
O cartão de visita para um grande jogo foi apresentado com apenas 11 segundos, numa saída de bola croata que colocou Perisic a rematar a rasar o poste da baliza de Courtois. Logo a seguir, uma arrancada de Yannick Carrasco entre roletas só não teve jackpot porque faltou o último passe. E na resposta seguinte foi Perisic a aparecer na profundidade para assistir Kramaric que perdeu espaço de remate. O encontro estava aberto pelo mérito que os artistas tinham de desequilibrar mais do que pelo demérito de falhas de posição ou em transições, permitindo que o melhor do futebol viesse ao de cima como uma arrancada com bola de Kevin de Bruyne que terminou com assistência para o remate por cima da área de Mertens (13′). Nem um erro de Carrasco na área serviu para desequilibrar porque o penálti foi anulado por fora de jogo (16′).
Prometia tanto, tanto que depois acabou por perder-se. Era quase impossível algum dos 22 em campo tratar mal a bola, tamanha era a técnica individual. No entanto, o encontro perdeu velocidade, caiu na intensidade, colocou-se a jeito para que as equipas encaixassem sendo que, com a vantagem de Marrocos por dois golos (que depois voltou a ser apenas um), a Croácia estava mais confortável com esse andamento que no fundo favorecia uma passagem. Assim, e até ao intervalo, houve um cruzamento perigoso de Dendoncker que atravessou toda a área sem desvio, um cabeceamento de Livaja que passou ao lado e pouco mais.
Martínez sabia que estava a 45 minutos de ver terminado o sonho de toda uma geração em chegar a uma final do Mundial depois da terceira posição em 2018, mesmo sabendo que do outro lado estava nada mais nada menos do que a vice-campeã. Para isso, colocou logo Lukaku em campo ao intervalo. E o avançado não demorou a cabecear para defesa apertada de Livakovic (49′). Na resposta, Brozovic e Modric obrigaram Courtois a intervenções complicadas para a frente sem recarga (53′ e 54′). Depois daquela pausa, o jogo já tinha voltado. E só não voltou mais porque Lukaku acertou no poste (59′) antes de falhar de baliza aberta num lance que deveria ser anulado. Não ficaria por aí, com o avançado a desperdiçar mais duas chances flagrantes daquelas que em dez falha uma e sair em lágrimas consolado por Henry pela eliminação, tendo expressado toda a sua frustração com um murro que partiu o acrílico do banco de suplentes.
A pérola
- É o menos consagrado entre tantos nomes consagrados, será tão consagrado como os mais consagrados: Gvradiol, central de 20 anos do RB Leipzig que esteve em destaque esta época sobretudo na Liga dos Campeões, voltou a fazer um encontro quase perfeito na defesa e justificou o porquê de, sendo o mais novo da equipa tipo, ser o jogador com maior valor de mercado e também, num plano mais desportivo, aquele que mais passes fez nos primeiros encontros dos croatas na competição (sobretudo para Modric).
O joker
- O meio-campo da Croácia é daqueles onde se escolhe a letra, dá-se a pauta e qualquer intérprete pode subir ao palco para brilhar. Logo à cabeça, com o Bola de Ouro Luka Modric. Depois, com um dos médios em melhor plano na primeira fase da temporada, Brozovic. A seguir, com um todo-o-terreno que faz de tudo um pouco, Kovacic. Há para todos os gostos do meio-campo, ninguém é como Perisic, neste caso a jogar mais à esquerda mas se fosse preciso mais pela direita ou pelo centro. Não é por acaso que joga da mesma maneira com pé direito ou esquerdo porque tudo o que faz sai quase sempre bem.
A sentença
- Marrocos não demorou muito a despachar a sua parte, marcando dois golos ao Canadá ainda na metade inicial do primeiro tempo e matando as esperanças do conjunto de Steven Vitória e Eustáquio em fazer pelo menos um ponto na despedida do Mundial. Assim, estava tudo concentrado neste jogo, com a Bélgica a voltar mais um encontro em branco e a deixar Doha sem chegar sequer aos oitavos. Já a Croácia, com uma vitória e dois empates, garantiu a passagem e deve cruzar com a Espanha.
A mentira
- Depois de um início de temporada marcado pelas lesões e pelo pouco tempo de jogo que o fizeram chegar a este Mundial com apenas seis jogos entre Liga e Champions (229 minutos, um golos e uma assistência), Eden Hazard prometia muito naquela que podia ser a sua última grande oportunidade de ganhar um título pela Bélgica. E até começou como titular nos primeiros dois jogos, saindo por volta da hora de jogo acrescentando pouco ou nada à partida. Agora, e pela primeira vez, até foi para o banco. Aos 31 anos, o avançado continua à procura de algo que desapareceu – o “outro” Eden Hazard.