O Campeonato do Mundo mais atípico, mais inesperado e mais polémico de sempre chegou ao fim. Foi praticamente um mês de competição no Qatar, entre protestos do Irão devido ao que se passa no próprio país e protestos da Alemanha devido ao que se passa no país anfitrião, Cristiano Ronaldo a ficar sem clube pela primeira vez na carreira e Marrocos a fazer história ao chegar às meias-finais. Este domingo, tudo chegava ao fim: e Argentina e França decidiam quem se tornava o novo campeão mundial.

No Estádio Lusail, a uma semana do Natal, disputavam-se páginas da História. Por um lado, a Argentina procurava chegar ao terceiro Mundial do país, o primeiro desde 1986, e recuperar do trauma das finais perdidas para lembrar Maradona e cimentar o estatuto de Messi enquanto herói nacional. A título individual, Messi podia subir ao degrau mais alto da carreira, conquistando o único troféu que lhe faltava e terminando com chave de ouro uma competição em se apresentou ao mais alto nível.

Ficha de jogo

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Argentina-França, 3-3 (4-2 após grandes penalidades)

Final do Campeonato do Mundo 2022

Estádio Nacional de Lusail, em Lusail (Qatar)

Árbitro: Szymon Marciniak (Polónia)

Argentina: Emiliano Martínez, Molina (Montiel, 90′), Romero, Otamendi, Tagliafico (120+1′), De Paul (Paredes, 102′), Mac Allister (Pezzella, 116′), Enzo Fernández, Di María (Acuña, 64′), Julián Alvárez (Lautaro Martínez, 102′), Messi

Suplentes não utilizados: Armani, Rulli, Foyth, Palacios, Correa, T. Almada, Papu Gómez, Guido Rodríguez, Lisandro Martínez

Treinador: Lionel Scaloni

França: Lloris, Koundé, Varane (Konaté, 113′), Upamecano,Theo Hernández (Camavinga, 71′), Griezmann (Coman, 71′), Tchouaméni, Rabiot (Fofana, 96′), Dembélé (Kolo Muani, 45′), Giroud (Thuram, 45′), Mbappé

Suplentes não utilizados: Mandanda, Areola, Pavard, Disasi, Guendouzi, Veretout, Saliba, Konaté

Treinador: Didier Deschamps

Golos: Messi (23′, gp e 109′), Di María (36′), Mbappé (80′, gp, 81′ e 116′, gp)

Ação disciplinar: cartão amarelo a Enzo Fernández (45+7′), a Rabiot (55′), a Thuram (87′), a Giroud (90+5′), a Acuña (90+8′), a Paredes (114′), a Montiel (116′)

Do outro lado, França também procurava chegar ao terceiro Mundial do país e tornar-se o primeiro bicampeão mundial desde o Brasil, já nos anos 50, para elevar Deschamps à certeza de que é um dos homens mais bem sucedidos da história recente do futebol. A título individual, Mbappé podia ganhar o segundo Campeonato do Mundo sem ter sequer 24 anos, algo que só Pelé tinha feito e que o lançava ainda mais para o papel de herdeiro de Messi e Ronaldo que sempre se soube que acabaria por assumir.

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Era neste contexto que, este domingo, Argentina e França disputavam uma final inédita. Scaloni surpreendia ao lançar Di María para a titularidade, já que o avançado da Juventus só tinha cumprido seis minutos contra os Países Baixos e falhou até a meia-final com a Croácia por motivos físicos, e deixava Paredes no banco para manter Enzo, De Paul e Mac Allister. Já Deschamps repetia o onze de gala, com Dembélé, Giroud e Mbappé no ataque e Griezmann, Tchouaméni e Rabiot no meio-campo. Messi, só por estar em campo, arrecadava mais um recorde: ultrapassava Lothar Matthäus e tornava-se o jogador com mais partidas em Campeonatos do Mundo, com 26.

Não foi preciso esperar muito tempo para perceber que a Argentina tinha entrado melhor na final do Campeonato do Mundo. Álvarez rematou para defesa de Lloris (4′), Mac Allister também colocou o guarda-redes à prova (5′) e De Paul atirou de fora de área contra Varane (8′) — tudo isto nos 10 minutos iniciais, tudo isto em 10 minutos em que França pouco ou nada conseguiu fazer. Os sul-americanos atuavam com as linhas muito subidas, aproveitando toda a largura do campo para depois exponenciar os movimentos interiores de Messi e Di María para libertar Álvarez, e os franceses demonstravam-se pouco reativos à perda da bola e muito presos ao próprio meio-campo.

França começou a equilibrar ligeiramente as dinâmicas à passagem do quarto de hora inicial, soltando-se da pressão alta e eficaz do adversário para passar algum tempo mais perto do último terço argentino. Foi nesta fase que Giroud cabeceou por cima na sequência de um cruzamento de Griezmann (20′), naquela que foi a grande oportunidade da seleção de Didier Deschamps ao longo da primeira parte, mas a escassa reação francesa depressa foi estrangulada pela eficácia argentina.

Di María desequilibrou na esquerda ao fintar Dembélé de forma brilhante, fugiu para a grande área e foi carregado em falta pelo jogador do Barcelona, com o árbitro da partida a assinalar grande penalidade de forma imediata. Na conversão, Messi não falhou (23′), chegou ao sexto golo no Mundial e isolou-se enquanto melhor marcador da competição. Ao contrário daquilo que seria natural e expectável, França não reagiu — continuou a permitir o ascendente da Argentina, não subiu os níveis de intensidade e permaneceu engolida no próprio meio-campo. E a seleção de Lionel Scaloni demorou pouco mais de 10 minutos a aumentar a vantagem.

Num contra-ataque perfeito e desenhado praticamente ao primeiro toque, Molina combinou com Mac Allister e o médio serviu Messi, que recebeu e soltou para Álvarez. O avançado do Manchester City devolveu a Mac Allister e o argentino do Brighton serviu Di María, que em velocidade e do lado esquerdo da grande área só precisou de atirar de primeira para fazer o segundo golo da Argentina (36′). Didier Deschamps decidiu mexer ainda antes do intervalo, trocando Giroud e Dembélé por Thuram e Kolo Muani, e França chegou ao final da primeira parte sem ter feito qualquer remate e sem qualquer ação ofensiva na área adversária.

Nenhum dos selecionadores mexeu ao intervalo e repetiu-se o cenário pouco provável que tinha surgido depois do golo de Messi: França não reagia, mantendo-se quase apática a menos de 45 minutos de perder a final do Campeonato do Mundo. A Argentina continuava a ser a equipa mais perigosa, com Álvarez a forçar Lloris a uma defesa apertada (59′) e Messi a atirar rasteiro e ao lado após um lance brilhante de Di María (61′), e a seleção francesa parecia estar mais perto de sofrer o terceiro golo do que propriamente de reduzir a desvantagem.

A equipa de Didier Deschamps esboçou uma resposta à passagem da hora de jogo, altura em que Lionel Scaloni começou a ativar o modo económico ao trocar Di María por Acuña, e Mbappé apareceu pela primeira vez na partida com um remate por cima (71′) que foi também o primeiro dos franceses. O selecionador francês voltou a mexer a 20 minutos do fim, lançando Coman e Camavinga, mas a Argentina já tinha iniciado os processos de proteção do resultado e blindava todas as vias de acesso à baliza de Emiliano Martínez. Nada parecia correr bem à seleção francesa — e os argentinos aproveitavam para desfrutar de uma final bem mais tranquila do que o esperado.

A 10 minutos do fim, porém, surgiu o extraordinário golpe de teatro. Otamendi fez falta sobre Kolo Muani no interior da grande área da argentina, com o árbitro da partida a assinalar grande penalidade de imediato: na conversão, Mbappé não falhou (80′) e reduziu a desvantagem, potenciando um pico de motivação francesa que abriu a porta ao improvável empate logo no minuto seguinte. Numa jogada deliciosa em que Coman roubou a bola a Messi e combinou com Rabiot, Mbappé recebeu na esquerda e tabelou com Thuram para atirar de primeira, bisar (81′) e isolar-se como o melhor marcador do Mundial com sete golos. Superando, claro está, Messi.

Nada mudou até ao fim dos 90 minutos — apesar de uma defesa de Martínez a remate de Rabiot (90+5′) e outra de Lloris a remate de Messi (90+7′) — e a final seguiu para prolongamento. Lionel Scaloni aproveitou para refrescar a equipa com as entradas de Lautaro e Paredes, Didier Deschamps lançou Fofana e o jogo manteve-se extraordinário: Messi voltou a marcar já na segunda parte do prolongamento (108′) e parecia ter decidido tudo mas Mbappé, do outro lado, voltou a responder de grande penalidade (118′) para carimbar o hat-trick e levar tudo para as grandes penalidades. Pelo meio, o francês assumiu-se mesmo como o melhor marcador do Campeonato do Mundo.

Aí, a Argentina foi perfeita e beneficiou dos erros de França — Coman permitiu a defesa de Martínez, Tchouaméni atirou ao lado e Montiel assinou o pontapé decisivo para dar o terceiro Campeonato do Mundo aos argentinos e evitar o bicampeonato dos franceses. Numa final fantástica, com seis golos e uma indecisão no resultado que se fez sentir ao longo de todo o prolongamento, Messi marcou mais dois golos e voltou a ser crucial para chegar onde sempre quis chegar. Diego Armando Maradona sempre quis, Lionel  Messi sempre sonhou, a obra acabou por nascer: e as portas dos céus abrem-se quando se joga para os deuses.