Certamente, já reparou: hoje, se quer ver cinema, tem de ligar a TV; se quiser ver desenhos animados (ainda que muito sofisticados), vai ao cinema. Para ver TV, é fazer scroll no telemóvel e lá se há-de cruzar com o que de mais estridente passou no dia. Neste mundo em que guardamos o arroz no frasco que diz sal e as massas na caixa do pão, a primeira incursão do notável Marco Bellocchio pelo pequeno ecrã é a enésima confirmação de que os modelos de distribuição e exibição mudaram. De que nós, consumidores, espectadores, indivíduos com uma determinada relação com o entretenimento e com a arte, mudámos.
Pouco mais de um mês depois da estreia em Itália, “Esterno Notte” chega à Filmin para levar Bellocchio de regresso ao caso Aldo Moro, quase 20 anos depois de “Bom Dia, Noite”. Uma minissérie de seis episódios que, no país de origem, passou também pelas salas de cinema, dividida em duas partes de 2h45 cada. Esteve em Cannes, ganhou o galardão para Inovação Narrativa nos Prémios Europeus do Cinema e o de Melhor Filme Internacional no Festival de São Paulo, mas “Esterno Notte” é, não há dúvida, uma série. Uma série onde a provável falta de treino do autor em contar uma história com muitos plots conduz à sua maior virtude: uma visão caleidoscópica que narra os mesmos acontecimentos vistos da perspetiva de diferentes protagonistas em cada episódio – a vítima, o ministro do interior, o Papa, os terroristas, a mulher da vítima – e o encontro de todos no desenlace.
[o trailer de “Estreno Notte”:]
Sentimos falta do vigor com que Bellocchio revisitou acontecimentos e personagens históricas, por exemplo, em “Vencer” ou “O Traidor”. Ao contrário desses triunfos anteriores, parece aqui, por vezes, demasiado preso ao caderno de encargos do negócio da nostalgia e do “vintage”: roupas, carros, mobiliário, cortes de cabelo (perucas, na verdade, e bem distrativas. Há um embaraço qualquer quando se lida com figuras ainda presentes na memória coletiva de que não padecem os históricos antigos. Não é preciso parecer Júlio César nem Colombo; só tem de se parecer com o ideal de Júlio César ou Colombo. A armadilha começa quando é preciso parecer-se com Tony Blair ou Sá Carneiro). A digressão é tão mais inesperada quanto “Esterno Notte” não é, assumidamente, uma reconstituição fiel dos factos ocorridos em Itália entre os anos de 1976 e 78; antes, toma a liberdade artística de os recontar da forma que lhe parece mais conveniente, para efeitos dramatúrgicos ou de reflexão sobre a verdadeira razão dos acontecimentos.
Afinal, a ferida Moro ainda arde na consciência italiana. O rapto e execução do líder da Democracia Cristã e, por duas vezes, primeiro-ministro, às mãos das Brigadas Vermelhas, é um caso que permanece por compreender na totalidade e a que Bellocchio regressa para nos deixar na perplexidade perante a aparente inação ou incapacidade do regime para negociar a salvação de uma das suas figuras tutelares. Em plena Guerra Fria, joga-se o confronto entre espiritualidade e fé cristã e materialismo dialéctico. O país que tem dentro um outro chamado Vaticano e onde os democratas-cristãos governam há 30 anos e os revolucionários que já só acreditam na destruição do sistema pela via da luta armada. Os receios da sovietização no coração histórico da cultura europeia e o medo da implantação de uma ditadura à maneira grega ou chilena, num país ainda fortemente assombrado pelos fantasmas do fascismo de Mussolini.
“Esterno Notte” é francamente bom quando Bellocchio o segura com a maturidade e sobriedade com que nos habituou a tratar a condição humana. Quando se permite conviver com a verdade das personagens, a natureza das suas convicções, as suas dúvidas, as suas contradições. Quando se demora literariamente nas cartas de Moro à família; na tensão interior de Adriana Farranda que sacrifica a maternidade à causa revolucionária; no desconforto do ministro Francesco Cossiga perante uma hipotética doença contagiosa que o estaria a tomar. Inesperadas e menos interessantes são as pontuais concessões aos excessos caricaturais de um Sorrentino, quando aproxima demasiado a câmara, simbólica e literalmente, das figuras, perdendo a noção do quadro geral, e a quem até vai buscar o actor-fétiche (Toni Servillo, aqui como Papa Paulo VI, ele que já foi, com Sorrentino, o mesmo Giulio Andreotti que em “Esterno Notte” paira lacónica, mas sinistramente, sobre o silêncio de uma eventual conspiração, interpretado por Fabrizio Contri, uma peruca besuntada e os óculos da minha avó Leopoldina).
Não fiquem, no entanto, dúvidas de que a estreia televisiva de um dos mais importantes cineastas europeus do nosso tempo é, tudo somado, uma recomendação segura para qualquer espectador adulto e disponível para pensar. Destaquem-se as interpretações de Margherita Buy (a mãe de Nanni Moretti em “Mia Madre”) como Eleonora Moro, Daniela Marra na pele da brigadista Adriana Farranda, Fausto Russo Alesi na do ministro do interior Cossiga, ou Fabrizio Gifuni como o homem no centro de toda a intriga.
Afinal, os super-heróis ainda estão para lavar e durar no grande ecrã e a política continua, como de costume, cheia de filhos de uma grande meretriz.