O documentário “Um gesto de liberdade”, que será exibido pela RTP 1 na segunda-feira (22:30), conta como católicos progressistas desafiaram o Estado Novo, há 50 anos, com a vigília da capela do Rato, em Lisboa.

A vigília de dezembro de 1972 é considerada um dos momentos marcantes da oposição dos católicos progressistas ao regime que viria a ser derrubado menos de dois anos depois, com a revolução do 25 de Abril.

O jornalista Jacinto Godinho, coautor do documentário com Carlos Oliveira, disse à Lusa que os católicos progressistas eram uma oposição “não organizada” que tinha várias tendências.

Uma, mais moderada, era representada por deputados da chamada Ala Liberal da Assembleia Nacional, entre os quais Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e João Miller Guerra, e surgiu em 1969, após as primeiras eleições do tempo de Marcello Caetano como chefe do Governo.

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A outra era constituída por um grupo mais radical, que queria fazer ações que estavam fora da possibilidade legal de oposição ao regime.

“O meu documentário é para tentar explicar como é que dentro desta oposição surge este grupo [mais radical] e surge a vigília. O que fiz foi seguir a história de dois protagonistas fundamentais da vigília, que são Nuno Teotónio Pereira e Luís Moita”, explicou.

O grupo mais radical, a que se juntou Francisco Cotovil, decidiu ficar na retaguarda por já ser conhecido da polícia política, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).

Por isso, contou Jacinto Godinho, este grupo foi “buscar pessoas não referenciadas pela PIDE para darem a cara e ocuparem a capela do Rato”.

Em 30 de dezembro de 1972, um sábado, no final da missa das 19:30, Maria da Conceição Moita anunciou ao microfone que um grupo de cristãos iria permanecer em jejum dentro da capela, fazendo uma vigília pela paz, quando Portugal estava em guerra nas colónias africanas desde 1961.

A vigília correspondia também à mensagem do Papa Paulo VI para o Dia Mundial da Paz, assinalado em 01 de janeiro de 1973, intitulada “A paz é possível”.

“Não usaram as expressões politicamente fortes, como ocupação ou greve de fome, porque não queriam espantar a comunidade de católicos moderados, para que aquilo viesse a ser um movimento de massas”, explicou Jacinto Godinho.

Mas, ao mesmo tempo, não queriam correr o risco de que esta vigília passasse despercebida como tinha acontecido com a realizada na igreja de São Domingos, também em Lisboa, em 1968.

Luís Moita e Conceição Moita, que estavam ligados às Brigadas Revolucionárias (BR), pediram apoio na divulgação da iniciativa a Carlos Antunes, que também integrava a mesma organização, fundada em 1970.

Esse apoio foi feito com panfletos que foram espalhados nas ruas com a explosão de petardos em vários locais de Lisboa e na margem sul em 31 de dezembro, pelas 17:00.

As explosões feriram três crianças, duas com gravidade.

“A novidade é que o panfleto é um panfleto politicamente muito mais forte, ou seja, já não é apenas uma vigília, é uma ocupação, e já não é apenas solidariedade com as vítimas da guerra colonial, é contra a guerra colonial e o Estado fascista. Já não é um jejum, é uma greve de fome”, explicou o autor do documentário.

“Acabemos com a guerra. O fim da guerra pode ser o fim do Governo português, que desse modo perde o seu grande apoio, que são as colónias”, lia-se no panfleto.

E é esta situação que leva o Governo a intervir.

“Era o objetivo deles e no fundo era a armadilha em que o Governo caiu, porque aquilo que aconteceu foi realmente inédito: a decisão tomada pelo ministro do Interior, Gonçalves Rapazote, com o aval de Marcello Caetano, de a polícia invadir a capela e prender todas as pessoas que lá estavam dentro”, relatou.

Apenas três horas após as explosões dos petardos, pelas 20:00, a polícia cercou a capela, que invadiu meia hora mais tarde, prendendo os 74 ocupantes.

“Houve ainda um episódio extraordinariamente importante que é a prisão dos padres”, disse Jacinto Godinho, referindo que daí resultou um confronto de bastidores entre o então cardeal patriarca de Lisboa, António Ribeiro, e o ministro do Interior.

O patriarca mandou os padres Armindo Garcia e António Janela celebrarem a missa de Ano Novo, contrariando as ordens do ministro, que tinha mandado selar a capela.

No final da celebração, os dois padres foram presos e interrogados na sede da PIDE.

O padre Janela só foi libertado em 02 de janeiro, depois de o patriarca ter permanecido em protesto à porta da PIDE.

Dias depois, o patriarcado divulgou uma nota na qual deu “o tom da nova atitude da Igreja em matéria política” e de relacionamento com as autoridades do Estado, relata João Barreto no livro “A transição falhada — o marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974)”.

Barreto lembra na obra que a Igreja Católica tinha sido um dos pilares que apoiaram a instauração e a conservação do regime do Estado Novo.

Os acontecimentos da capela do Rato levaram ainda à exoneração de 12 funcionários públicos.

Originaram também, em 18 de janeiro de 1973, um debate aceso no parlamento entre os deputados Casal-Ribeiro, a favor do regime, e Miller Guerra, da Ala Liberal.

Em defesa da liberdade de pensamento e de expressão, Miller Guerra acabaria por renunciar ao cargo no mês seguinte, segundo o diário das sessões.

O documentário resultou de uma investigação conjunta com a Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril.