Dependendo do sistema de crenças de cada um, é possível acreditar que Tom Verlaine estará neste momento num pub no céu a jogar setas com Scott Walker – pelo menos se tomarmos como verdadeira uma história impossível de verificar, mas que é citada com regularidade no mundo da pop alternativa: um jornalista terá um dia perguntado ao recluso Scott Walker se era verdade que este havia mesmo passados os anos em que não editou discos (até ao regresso com Tilt, em 1995) a jogar setas em pubs londrinos com Tom Verlaine. Scott terá respondido que sim, foi isso que se passou, exceto não ter sido em Londres, não serem pubs, não haver setas e não ser Tom Verlaine.
Como todos os mitos, este serve apenas para perpetuar-se a si próprio – e, no caso, para cimentar a ideia de Walker enquanto homem esquivo a biografias. Os fãs de Walker sorriem e seguem a vida, felizes por na história o seu herói manter os traços que supostamente o definem. Mas se pararmos um instante para analisar a pergunta encontramos ali um nome, o de Tom Verlaine, e damos por nós a perguntar-nos como raio terá nascido essa ideia — brilhante, diga-se – de que Walker e Verlaine, almas torturadas da música popular que se recusaram a ser populares, teriam feito as suas travessias do deserto não num deserto, mas num pub. Em Londres. A jogar setas.
E porquê Tom Verlaine? Walker era um ídolo pop nos Walker Brothers que sonhava fazer música séria e começou a compor as suas próprias canções, tomando inspiração em Jacques Brel e em filmes de Bergman; posteriormente (a partir de Tilt) fez alguma da mais violenta música concebida na história da música violenta. Por sua vez, Verlaine surgiu com o punk americano, mas recusou-se a dedicar a sua vida a meros três acordes – a música que fez com os Television era simultaneamente demasiado complexa e melodicamente acessível; sofisticada e repleta de drama. Ambos evitaram o mais possível ser reduzidos ao que o público queriam que fossem – e ambos evitaram o mais possível o público.
Verlaine morreu este sábado, 28 de janeiro, aos 73 anos – quando partilhei a notícia com amigos, a maior parte desconhecia o nome ou pensava que ele já não estava entre nós. Depois, passado um bocado, um ou outro perguntaram: “Esse era o do Marquee Moon?”. Sim, respondi. “Grande disco”, foi o retorno. Mas grande disco não chega para definir Marquee Moon, a obra de estreia dos Television, banda que Verlaine liderou e que por si só definiu todo o indie-rock que se seguiu e a forma de usar a guitarra elétrica no rock. E se duvidam da ideia perguntem-se: quantas pessoas no rock tocam hoje como Clapton ou Jeff Beck. Exato: nenhuma. Porque tentam todas tocar como Verlaine – e não conseguem.
O que aconteceu em Marquee Moon (de 1977) é da ordem do milagre: ali estava um disco de (supostamente) punk-rock com canções que duravam 10 minutos, mas que não era prog; em que havia virtuosismo, mas sempre ao serviço da canção; em que não havia solos à maneira dos blues, mas a guitarra ritmo podia tanto suster a canção numa sequência de acordes como lançar-se a um improviso mais próximo do jazz. As canções de Marquee Moon pareciam ter acabado de nascer naquele instante e por mais anos que passem damos por nós a descobrir mais e mais detalhes: mais um overdub de guitarra que nos escapara, um dedilhado, um riff. A guitarra atrasa-se em relação à marcação do tempo, depois recupera, assenta num progressão para posteriormente a abandonar e abandonar-se a uma digressão antes de acumular tensão e explodir.
[ouça o álbum “Marquee Moon” dos Television na íntegra através do Youtube:]
Marquee Moon era simultamente complexo e melódico, sofisticadíssimo e conhecedor do passado, revolucionário e cantarolável, improvisado e revisto até à obsessão, a obra de um perfeccionista para quem a cena em que estava integrado – o punk que se tocava no mítico CGBG – era insuficiente para a sua ambição. Nisso, Verlaine não foi caso único: esse universo, que começou com os Ramones e dois acordes, foi o mesmo que pariu os Blondie, os Talking Heads ou Patti Smith. Mas foi Verlaine a libertar o movimento das suas amarras estéticas e ideológicas – porque a música podia ser tudo. E nas seis cordas da guitarra que ele segurava na mão era-o.
O nome de nascença de Verlaine era Thomas Miller, rapaz nascido numa família judia de New Jersey; quando andava no liceu, Miller fugiu para Nova Iorque, acompanhado do seu colega e amigo Richard Hell, com quem tocaria durante anos antes de se separarem: Hell queria criar música punk e agonizava com o perfeccionismo e as infinitas horas de ensaio a que Verlaine submetia os seus parceiros de bandas. Miller roubou o nome Verlaine ao poeta francês Paul Verlaine, amigo e amante de Rimbaud – e só isto bastaria para Hell se ter apercebido que as intenções do amigo iam um bocado mais longe do que as dos Ramones.
Estas histórias são narradas ao detalhe em Please Kill Me — The Uncensored Oral HIstory of Punk, de Gillian McCain e Legs McNeil. A obsessão e perfeccionismo de Verlaine compensaram: cada improvisação num ensaio encontrava posteriormente lugar numa nova parte de uma canção, sendo posteriormente trabalhada até à exaustão. Enquanto novas bandas surgiam todas as semanas no CGBGs, com 10 canções compostas num ensaio, Verlaine levou os seus colegas de banda numa aventura de anos até Marquee Moon atingir a perfeição sónica absoluta: uma escrita exímia e complexa, em constante mutação rítmica, repleta de linhas de guitarra que entravam e saíam da canção, enquanto por cima a voz funcionava como âncora.
O impacto de Marquee Moon não foi comercial – mas mudou radicalmente a abordagem à guitarra dos aspirantes a músicos: Robert Forster, a metade sobrevivente dos Go-Betweens (Grant McLennan já morreu), contava recentemente que ao ouvir pela primeira vez Marquee Moon percebera que a sua época, a música do momento, da sua geração, acabara de nascer. Forster, como muitos outros, tentou compor e tocar como Verlaine – na impossibilidade, fez pop sofisticada, na qual se nota perfeitamente a influência de Verlaine (como na linha de guitarra de “River of Money”).
Quase todo o indie-rock posterior tem essa mesma dívida e não é mais que uma depuração das intrincadas linhas de guitarra de Verlaine – cujo sentido harmónico remonta à sua infância, quando estudou saxofone e piano e desenvolveu uma obsessão por jazz, em particular John Coltrane. Não haveria Pavement ou Built To Spill sem Television, em particular na ideia de que uma frase de guitarra, em constante mutação, pode guiar uma canção repleta de diferentes partes e ainda assim melodicamente acessível.
Um segundo álbum com os Television não seria tão bem conseguido – a banda separou-se, mas ao longo dos anos Verlaine reuniu-a pontualmente, embora sem os membros originais: por exemplo, Fred Smith, marido de Patti Smith, morreu entretanto. A amizade, no entanto, ficou e foi Jesse, a filha de Fred e Patti, quem deu oficialmente a notícia da morte de Verlaine, no sábado à noite.
A solo, Verlaine teve altos e baixos, mas Dreamtime, de 1981, é um disco soberbo, em particular para quem for fanático pelas seis cordas, instrumento que Verlaine elevou à condição de poesia: como esta, tudo na sua música parece espontâneo e natural, uma emanação das forças da natureza, e no entanto tem a precisão e a estrutura lógica do mais trabalhado dos algoritmos.
Passa a seta, Scott.