Nunca houve uma via única para o sucesso, mas costumava dar-se o caso de ser necessário que uma canção passasse muito na rádio para chegar ao topo das tabelas de vendas; depois da rádio veio a televisão – ter um vídeo a rodar noite e dia na MTV era condição sine qua non para chegar ao topo rarefeito do êxito. A única outra forma de alcançar o sucesso era o bate boca, aquela situação em que o Zé gosta de um disco, grava uma cassete para a Maria e de boca em boca, de cassete em cassete, alguém se torna inesperadamente uma estrela, passando ao lado do circuito comercial convencional.
A tecnologia mudou e com isso mudaram as formas de divulgação. Se hoje ainda se fala em tabelas de vendas, isso não significa que estejamos a falar propriamente de vendas porque não há objetos físicos transacionados, há streamings e uma fórmula para calcular quantos streamings completos equivalem a um CD vendido e vice-versa. Tecnicamente, hoje quer-se chegar ao topo das tabelas de largura de banda ocupada – o que é um termo bem menos sexy que tabelas de vendas.
Se já era difícil para a indústria perceber como comercializar os seus produtos após a revolução das redes sociais, o surgimento do Tik Tok tornou tudo ainda mais confuso: a dado momento a versão de Lil Nas X para “Old Town Road”, uma canção mais antiga que a minha avó, tornou-se um êxito massivo quando os usadores do TikTok começaram a criar vídeos em que dançavam ao som da canção, que da noite para o dia passou a estar em todo o lado. “Garotos resolvem gravar um vídeo a fazer moves ao som de uma canção aleatória e no dia seguinte estás rico” – é difícil perceber se isto é a maravilha do capitalismo ou uma distopia.
[“Bunny is a Rider”:]
Seja o que for, veio para ficar: o Tik Tok cresce e cresce e, com o seu crescimento, surgem mais fenómenos vindos do nada, seja com canções novas ou antigas: quando a miudagem na mencionada rede social recuperou “Dreams”, dos Fleetwood Mac, depois de um garoto fazer um vídeo com a canção em fundo, vídeo que se tornou viral, de repente toda a miudagem estava a falar dos Fleetwood Mac – que editaram a canção em 1977.
Isto significa que, pelo menos para os usuários do Tik Tok, as canções mudaram de função: elas costumavam ser uma espécie de guia para o crescimento, a banda-sonora das nossas vidas, pequenas lições condensadas sobre corações partidos e a difícil ciência de descobrir a nossa identidade enquanto navegamos o mar confuso e cheio de escolhos da entrada na idade adulta. Agora, são a banda-sonora dos vídeos com que alimentamos o nosso narcisismo – o que para a indústria vai dar ao mesmo, desde que o dinheiro continue a pingar.
O Tik Tok não premeia apenas canções antigas, até porque rapidamente a indústria virou a sua atenção para lá – promover canções nas redes sociais que os garotos usam é o modo de vida da indústria. Entre as canções de novos artistas que viralizaram no Tik Tok estava “So Hot You’re Hurting My Feelings”, de Caroline Polachek. No Spotify, a canção tem mais de 78 milhões de streams, o que no mundo distópico pós-inflação em que vivemos, será o equivalente a arrendar um quarto em Lisboa durante três anos mais as propinas de uma licenciatura em Marketing Digital. As restantes canções que ocupam os cinco lugares cimeiros das canções mais ouvidas de Polacheck no Spotify têm entre 17 e 1,9 milhões de streams, o que equivale a um T zero nas zonas rurais da Serra Leoa ou 0,00001% do lucro horário de qualquer distribuidor de drogas de Ciudad Juarez, México.
Declaradamente pop e com leve tratamento eletrónico, “So Hot You’re Hurting My Feelings” era uma canção engraçada, com uma melodia agradável e simples e um refrão que oscilava entre os trejeitos dos anos 80 e o r’n’b actual. A canção fazia parte de Pang, o seu disco de 2019, mas o mais engraçado disto tudo é que Polacheck não é exatamente uma novata – durante anos ela fez parte dos Chairlift, uma banda de pop indie que teve ali um breve momento de êxito no final da primeira década deste século.
[ouça na íntegra o álbum “Desire, I Want to Turn into You”, de Caroline Polacheck, através do Spotify:]
O que significa que Desire, I Want to Turn Into You, o seu mais recente e recém lançado álbum, faz parte da terceira vida musical de Polacheck: primeiro ela tentou a sua sorte como aspirante a musa indie de culto; depois, como aspirante a criadora pop; e agora é uma estrela, pelo menos durante o tempo em que o Tik Tok decidir que as suas canções funcionam como banda-sonora de vídeos.
Pang era um belo disco, repleto de canções simultaneamente pop (no sentido de terem melodias acessíveis e cantaroláveis) e desafiadores; mas o tipo de disco que se faz quando ninguém nos conhece e não se tem nada a perder não é o mesmo tipo de disco que se faz quando toda a gente está a olhar para nós e já temos dinheiro para comprar um terreno em Águeda com vista à produção de amoras.
Não que Polacheck não tenha ouvido para uma boa melodia (claramente tem), mas ela procura um pouco mais que isso – e uma boa prova é “Bunny is a rider”, uma canção que parece não obedecer a nenhum tipo de construção convencional da pop: abre com uma linha de baixo e um assobio, antes de adicionar um beat balançado (e o assobio ainda em fundo); uma linha de sintetizador e um chamego de guitarra depois e estamos num refrão que sabe aninhar-se no interior do ouvido com carinho.
Talvez porque não seja fácil escrever letras sobre betão armado, as Leis de Maxwell ou a injeção de dependências na framework .NET, a maior parte das canções pop são sobre o amor e assim também as de Polacheck – embora ocasionalmente, como em “Bunny is a rider”, a personagem da canção esteja mais preocupada em desaparecer do que em ser encontrada ou em encontrar o amor: “Bunny is a rider/ Satellite can’t find her”, canta Polacheck, sobre uma mulher que ficou “AWOL on a Thursday”. Propositadamente ou não, Polacheck acaba por escrever uma canção cujo meta-significado acaba por ser uma definição da pop: encontrar algo em que possamos desaparecer, deixar de estar contactáveis pela realidade, ficar AWOL, perdidos numa melodia.
[“Billions”:]
São necessárias duas condições simultâneas para nos perdermos numa canção: a) termos necessidade de escapismo; e b) a canção providenciá-lo. Em “Blood and Butter” a opção é (novamente) criar uma canção que não use as regras comuns de escrita pop: começa só com a voz de Polacheck (uma ótima voz, diga-se), coros em fundo e percussões, antes de ir acrescentando detalhes inesperados: há uma guitarra acústica na ponte da canção, que deixa tudo em suspenso, antes de melodias de sintetizador entrarem em cena e chegarmos a um refrão pouco óbvio mas recompensador – porque, ao fim e ao cabo, quantas vezes tivemos uma gaita-de-foles na coda de um refrão de uma canção pop, enquanto coros e cordas cirandam ao seu redor?
Antes os discos mais vendidos partiam de guitarras; depois vieram os sintetizadores; a seguir os samples e o hip-hop, depois o r’n’b. Agora não se sabe muito bem, depende dos miúdos do TikTok — e os miúdos não sabem o que estão a fazer e introduzem caos, o que é salutar, porque por vezes acertam. Polacheck, por exemplo, não é propriamente qualificável. Ela tenta ser pop (ou ter um refrão pop), mas simultaneamente recusa-se a ficar-se por um género ou usar fórmulas – vai à pop, ao r’n’b, usa guitarras, polvilha as canções de beats e, na falhada “Fly to you”, usa um breakbeat saído dos tempos do drum’n’bass. Nem sempre acerta (como na canção supra-mencionada), mas quando o consegue (“Bunny is a rider”, “I believe”, “Blood and butter”) torna-se criadora de uma espécie de pop mutante para a qual ainda não se encontrou qualificação.
Mesmo a acabar surge “Billions”, uma canção feita de quase nada: pequenos beats que se vão acumulando antes de um refrão aproximado ao r’n’b; há uma pausa, uma nota grave de piano e uma melodia a pairar no ar, sexy como um gelado num dia de calor abafado. Segundos depois há pizzicatos de violinos antes de retornamos ao ponto inicial. Há jogadas de xadrez menos complexas que a intrincada construção de “Billions” e há estrelas pop mais óbvias que Caroline Polacheck – que não quer ser o que outros querem que ela seja.