Sente-se que vai acontecer a qualquer momento, como uma morte súbita com aviso prévio. Que um bom olissiposapiens deve escolher de forma cabal entre raspar o fundo da frigideira do tasco ou esvaziar o fundo dos bolsos por um menu com 20 momentos. Bem sei que os tempos são de guerrilha, que o meio termo entre barricadas escasseia, mas, que querem?, eu tenho uma fé incorrigível no ser humano e depois de beber o terceiro café do dia deixo de sentir que a capital se deixou afogar num rio de matcha, com lattes e machiatos à tareia com bicas e abatanados até ser derramado o último pingo de leite numa chávena.

A verdade é que as coisas não estão fáceis e uma pessoa às vezes só quer uma sandes de queijo ou de presunto a meio da tarde. Ou picar uma salada de ovas de bacalhau (8 euros), ou mesmo um Choco Frrrrito (10,50 euros) (se o Mercúrio não estiver retrógrado é permitido sonhar um pouco mais alto.) Matar a fome sem demorar horas, por valores aceitáveis e em cenário aprazível. Simples mas que não pareça que a montra de salgados não é limpa desde o Cerco de Lisboa. Onde se possa levar gente de fora sabendo que se está bem cá dentro. Ufa. Parece um sonho, não é? É isso. Ou então é só mais um dia em Madrid. E se fosse no Cais do Sodré?

Serve isto para dizer que um destes fins de semana, pela uma da tarde, quando passava pela rua da Moeda, já não fui a tempo de agarrar uma das duas mesas soalheiras no exterior do Corrupio. Sorte a minha que lá dentro me esperava um balcão e havia lugares de sobra. Numa cidade onde já é preciso reservar tudo com a antecedência com que se prepara o Carnaval carioca, poder confiar a vida ao acaso é um bálsamo apenas suplantado pela presença de uma salada de orelha no menu. Entretanto já terá percebido que não estamos no Veganistão.

Confesso que não sou daquelas pessoas que só se atrevem no escuro do cinema depois de ler a sinopse do filme. O sítio tem boa pinta por fora e no interior não desilude. A primeira imagem, ajudada pela leitura da ementa, é que o restaurante tem comida portuguesa para partilhar (ou não) mas não é uma casa de petiscos. Pelo menos não uma dessas moradas, como em tempos foi moda e praga, em que os ovos com farinheira ousaram competir com o uso capião do arroz doce nas ementas nacionais. Como diriam os Ornatos Violeta, alguém escreveu o nome “tasca” e “taberna” em toda a parte: “Nas casas, nos carros, nas pontes, nas ruas. Em todo o lado essa palavra. Repetida ao expoente da loucura!

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Não me interpretem mal, eu ADORO ovos, e ADORO farinheira, e tolero perfeitamente a sua coabitação, (e GOSTO dos Ornatos e muito mais GOSTO de arroz doce) mas o upgrade que se tem visto na cidade neste segmento é mais que bem vindo.

Uma casa que serve canja todos os dias não ganha só um lugar no meu coração. Se eu me vir numa fila do SNS para uma intervenção na aorta cedo o lugar de bom grado à pessoa que a confecionou mesmo que não precise dele. A canja é uma concorrente direta de qualquer outro prato, penalizando-me de cada vez que a negligencio em favor de uma opção mais robusta, porque me imagino a esmagar sem dó nem piedade um trevo de cinco folhas, a rasgar uma raspadinha com prémio, a ignorar um T2 com renda controlada na lista dos classificados. Quando não inundada de gordura, a canja tem a dignidade e beleza de um primeiro amor ou de uma última ceia.

Venho sozinho mas trago a má companhia de uma gripe, combinação fatal para longos festins gastronómicos e em simultâneo o zénite do teste do algodão culinário. Se isto me souber bem, tenho mesmo que voltar. “Peça só isso e depois logo vê”, aconselha o chef, Daniel Ferreira, atencioso com convalescentes, em vez da abordagem chico esperta que recomenda um sortido e nos deixa com bandulho demasiado pesado e carteira desnecessariamente leve.

Os anglo-saxónicos têm a palavra “serendipity” para descrever aqueles acasos que têm tanto de feliz como de misterioso. Eu tenho termos como “carne de porco à Alentejana”, e chega-me de vocabulário. Reparo que nunca tinha pensado nisto com tanta segurança como agora, enquanto sorvo o meu caldo com massinha e frango desfiado.

O Corrupio é mesmo um oásis numa zona de cardápios em inglês, calçado vegan, gorros coloridos, e onde o vendedor da banca do mercado ainda me diz “leve antes isto que é mais barato e aguenta mais tempo” com a generosidade dos velhos autóctones, reacendendo a minha esperança matinal. Mas, note bem, isto é menos sobre uma guerra contra as nações invasoras deste retângulo e mais uma evidência de tréguas com aquilo que é ser português e comer em português. Eu vim em missão de paz e saí satisfeito.

Aqui extingue-se a minha dúvida sobre o destino a dar aos típicos azulejos, que tantas vezes exibimos como uma marca de nascença embaraçosa, seja em fachadas que já conheceram melhores dias ou na forma de ímans comprados em lojas de conveniência. Do tampo do balcão ao painel na parede, o Corrupio é um ótimo exemplo de como é possível honrar um cartão de visita tão nobre sem cair em disparates, tudo com o selo de categoria do Pedrita Studio. Os desenhos são frescos, as frases aquecem a alma, e a sopa, felizmente, veio na temperatura certa, servida ainda com ovo e hortelã (4,50 euros).

A entrada resolve bem sem grandes invenções. Uma fatia generosa de pão de massa mãe e uma manteiga de soro de requeijão da Serra. Mais um copo de tinto (6 euros) e uma água lisa. E talvez ainda tenha espaço para algo discreto mas marcante. Um pastel de massa tenra (2,50 euros), por exemplo. De que é, pergunto? “De bacalhau com natas e bacon”. Como disse?

VALHA-ME DEUS, ESTAVA TUDO A CORRER TÃO BEM!

Pausa para um momento de suspense, porque isto tem tudo para fazer descarrilar antes do próximo apeadeiro uma história que ia no bom caminho. Mas afinal não. O pastel é a prova de que vale a pena dar uma oportunidade ao improvável e desconhecido. O bacalhau com natas e o bacon são a dupla de amigos que se conhece há vinte anos e que um dia, por genuína cumplicidade, pura preguiça ou mera resignação, entendem que são almas gémeas e vão ao cartório aviar papéis e trocar votos para o que resta da vida.

Não sei se tive sorte ou se é sempre assim mas a banda sonora é outra agradável surpresa, um ameno hino a uma Lisboa que é caldeirão de eras, estilos e cores, contagiando o ambiente sem furar tímpanos. Dos GNR a Capitão Fausto ou a Garota Não, passando por Ildo Lobo, a playlist não envergonha e faz-nos lembrar que já fomos todos um pouco mais novos e um pouco menos azedos. Por falar nisso, saltei a última página, a dos doces, mas um dia prometo voltar para prová-los — nem que seja a Mousse de Chocolate com Castanha (4,50 euros)

Serviço simpático, quase tudo finalizado à nossa frente, carta interessante de vinhos, com opções a copo e tudo apresentado e devidamente preçado em nosso redor para ninguém ir ao engano quando olhar para a fatura. Destaco ainda os cabides instalados de forma útil sob o tampo do balcão, e o conforto dos assentos.

O ambiente é cosmopolita sem ser pedante, brioso sem arrogâncias. E eu não estava a brincar quando disse que aqui encontra queijo da serra ou presunto pata negra a meio da tarde (são as famosas sandes da Odete, para trincar todos os dias entre as 16h00 e as 19h00). Também há tábuas de queijos e enchidos (12 euros cada) e quanto aos pratos principais, pode escolher entre um arroz de cabrito, enchidos e laranja (15 euros); uma açorda de legumes (11 euros); ou um peixe do dia com arroz fresco de limão e coentros (14 euros). Ou quem sabe umas ervilhas com ovo a baixa temperatura e torresmos (12,50 euros).

Só não esbanjo cinco estrelas porque este não é um sítio fácil para famílias com miúdos pequenos ou adultos com limitações físicas. Não dá para sentá-los neste bancos elevados e as mesas sentadas são apenas quatro, pelo que será melhor reservar com tempo. As crianças ainda vão ter que comer muita salada de orelha até chegarem ao balcão. Paciência, há castigos piores.

Silvestre da Silva escreve com muito coração, alguma cabeça e todo o estômago possível. No final, paga sempre a conta. Ainda vai na segunda fase da vida, espera chegar à terceira, e pela primeira vez mostra o que vale como Experimentador Implacável.