Apresentado no Festival de Sundance em janeiro de 2022, mais ou menos um mês antes do início da guerra na Ucrânia, “Uma Casa Feita de Farpas” chegou há dias à plataforma de streaming Filmin, a poucos dias dos Óscares, onde tem sérias hipóteses de ganhar a estatueta de Melhor Documentário. O filme de Simon Lereng Wilmont, que já arrecadou prémios em alguns festivais (incluindo Melhor Realizador em Sundance), relembra, ao longo de hora e meia, um inferno humano e social que não surgiu com a invasão russa que começou a 24 de fevereiro de 2022.
Na verdade, aqui a batalha ainda é outra, a do Donbass. Ao longo de dois anos, o realizador filmou as vidas de algumas crianças num orfanato a vinte quilómetros da frente da batalha. As incursões russas são mencionadas, mas há algo mais que pesa, os problemas sociais que duram há décadas e que se agravaram nos últimos anos, com a guerra e, por consequência, o desaparecimento de algum trabalho feito para mudar a realidade das crianças naquela região — uma zona que é espelho da pobreza, as dificuldades sociais acumulam-se, o álcool e as drogas estão tão presentes que, quando mencionados, parecem composição de uma inevitabilidade.
Por exemplo, nos vários telefonemas que são usados pelo realizador é frequente ouvir-se do outro lado que a mãe ou o padrasto da criança não podem vir agora ao telefone porque caíram em casa, completamente alcoolizados; ou, então, as crianças mencionam o alcoolismo dos familiares com um tal funcionalismo que o problema se assemelha mais a um ofício remunerado do que a uma desgraça. Estas descrições não são para ter piada, nem para chocar. “Uma Casa Cheia de Farpas” apresenta a situação com a naturalidade e secura exigida. Tem tanto de cruel como de humano. E talvez sensibilize mais, hoje, com uma guerra maior a acontecer: se era assim, imagine-se agora. Um pensamento que ocorre muitas vezes ao longo do documentário.
[o trailer de “Uma Casa Feita de Farpas”:]
O orfanato funciona quase como uma personagem protagonista. É um local especial, porque não é realmente um orfanato: é sobretudo uma casa de acolhimento onde as crianças permanecem até nove meses antes de se mudarem para um orfanato, que acaba depois por representar uma última solução. Até lá, há outras, se a situação em casa melhorar, se outro familiar acolher a criança ou então se fora encontrada uma família de acolhimento. Nunca é dito de forma explícita, mas rapidamente percebemos que estamos perante um local de transição. Ninguém sabe é o que vai acontecer a seguir.
As crianças criam relações entre elas, os rapazes propícios à rebeldia com facilidade se juntam e replicam uma série de códigos e hierarquias que existem no resto do mundo. Estas relações, contudo, geram momentos frágeis, como quando um rapaz que já cumpriu todos os ritos de passagem e se inteirou com o gangue dos miúdos, se vê separado de todos eles porque já cumpriram o seu tempo e têm de ir para outro lugar. O miúdo fica desamparado, a máscara forte que andava a construir desmancha-se e revela-se, uma primeira vez, a criança que facto é. Uma que agora torna evidente o que sempre tentou esconder com mais força: a tristeza. Depois, prossegue caminhos criando outras amizades, com uma menina que trata como se fosse a irmã mais nova, a mesma que sofrerá quando ele tiver de partir. Tudo para ilustrar o ciclo interminável que se replica vezes sem conta.
Por vezes, esquece-se essa tal tristeza causada pela normalidade da situação. Ali as crianças estão seguras, aprendem e são instigadas a aprender. Vemos muitos momentos de aprendizagem e, sobretudo, de descoberta da brincadeira. Os vídeos de danças do Tik Tok repetem-se naquelas salas. Por vezes, parece que estamos noutro sítio, noutra realidade.
O dinamarquês Simon Lereng Wilmont já tinha filmado na Ucrânia, no anterior “The Distant Barking Of Dogs” (2017) acompanhava a vida de um rapaz de 10 anos que vivia na mesma zona em que este documentário é rodado. Os temas repetem-se, as crianças passam pelas mesmos desafios e a inocência parece ser algo em que se deixa de acreditar. E isso, para o espectador, é difícil de aceitar, primeiro enquanto conceito abstracto; depois, enquanto realidade que sabemos que existe. “Uma Casa Feita de Farpas” aproxima-nos da normalização deste caos humano. Torna-o concreto e quotidiano.
Vemos as crianças a aceitar aquele momento – e, por consequência, a aceitar a impossibilidade da inocência – porque o que está à volta é demasiado insuportável para a vida infantil como a concebemos. O que ficou lá fora, a família, parece não ter lugar para eles: os problemas sociais tomaram conta de tudo e a resposta surge em chamadas sem resposta, telefonemas de falsas promessas ou números que deixaram de existir. E, nisto tudo, ainda há aquela coisa chamada esperança, de luz ao fundo do túnel: pelo menos ainda há lugares assim. O momento atual favorece — desgraçadamente — a emoção de se ver “Uma Casa Feita de Farpas” e é possível que seja esse mesmo momento que o puxe para ganhar um Óscar dentro de dias, mesmo com concorrência pesada como “All That Breathes” (HBO Max).