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"Rain Dogs" e a boa tradição britânica das preciosas vidas banais

Este artigo tem mais de 1 ano

Ex-stripper vira autora de best-sellers e o livro é transformado em série. Pode parecer apenas mais uma história de sucesso dramático casual, mas vale cada um dos oito episódios. Para ver na HBO Max.

Costello, interpretada por Daisy May Cooper, é a protagonista de "Rain Dogs", personagem inspirada nas memórias de Cash Carraway
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Costello, interpretada por Daisy May Cooper, é a protagonista de "Rain Dogs", personagem inspirada nas memórias de Cash Carraway

Costello, interpretada por Daisy May Cooper, é a protagonista de "Rain Dogs", personagem inspirada nas memórias de Cash Carraway

Ao longo dos últimos anos, a televisão de massas tem-se encostado ao extraordinário, ao fora da norma, seja com fantasias de “Guerra dos Tronos” ou “The Walking Dead”, as vidas inatingíveis dos Roy em “Succession”, o sonho (ou pesadelo) da família real britânica em “The Crown”, as férias que nunca vamos ter em “White Lotus”. Até “The Bear” teve de tornar a simples confeção de sanduíches num campo de batalha. Se só se olhar para a superfície, a produção televisiva atual quer-se impenetrável ao comum, as vidas mais próximas das audiências viraram matéria que muitas vezes parece coisa de nicho. Mas é neste campeonato que tem surgido alguma da melhor televisão contemporânea — temos exemplos como “Fleabag”, “In My Skin”, “I May Destroy You” “Happy Valley”, “Somebody Somewhere” ou “Fleishman is in Trouble”. Rejubilemos: a partir desta semana há mais uma produção para juntar a esta família. Chama-se “Rain Dogs”, na HBO Max. O primeiro episódio já está disponível.

As vidas ordinárias têm um lugar especial na realidade audiovisual britânica — precisamente a que está aqui em causa. Uma longa tradição que se começou a manifestar em especial a partir dos anos de 1970 no cinema e que na última década tem encontrado um renovado fulgor. Cash Carraway tem umas coisas a dizer sobre isso. Foi a vida ordinária de mãos dadas com a pobreza que lhe moveu a carreira de dramaturga semifalhada para a de escritora best seller. Até 2019, poucos a conheciam fora do Reino Unido, tinha passado os anos anteriores a construir carreira como dramaturga e blogger que contava histórias sobre a vida passada. É essa vida que entra em “Rain Dogs” e, antes disso, em Skint Estate, a memória pessoal sobre essa vida na pobreza.

[o trailer de “Rain Dogs”:]

https://www.youtube.com/watch?v=WOHpZ5_OcoE

Cash Carraway foi stripper quando era mais nova e enquanto mãe solteira teve vários trabalhos ao mesmo tempo que tentava ser escritora. Em 2019, as memórias viraram fenómeno de vendas, os direitos foram comprados para uma série de televisão (pela BBC, que assume a produção em conjunto com a HBO) e assim nasceu “Rain Dogs”, um misto de Skint Estate e de Fleshpot, o primeiro e o novo livro de memórias (este último ainda em processo de escrita). Fleshpot é também o nome do peep show onde a protagonista de “Rain Dogs” trabalha — chama-se Costello e é interpretada por Daisy May Cooper.

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Os oito episódios de “Rain Dogs” têm um jeito imperdoável para com as personagens, tanto as principais como, e sobretudo, as secundárias. Costello tem uma filha de dez anos (a estreante Fleur Tashjian) que segue a mãe nestas desventuras. Ambas são apresentadas quando estão prestes a ser despejadas do apartamento onde vivem, depois de meses de rendas em atraso. O primeiro episódio sintetiza um manual de sobrevivência para quem vive no limite de não ter dinheiro: como sair de um táxi sem pagar, onde procurar sítios para dormir e, em desespero, aceitar a oferta de um estranho como generosidade e não aproveitamento.

Também se fica a conhecer o gang de Costello: Gloria (Ronkẹ Adékoluẹjo), uma espécie de melhor amiga que, tal como a protagonista, parece viver a onda do dia; Lenny (Adrian Edmondson), um cliente-amigo de Costello, a quem esta vai limpar a casa, entre outras coisas, como espécie de fantasia sexual deste pintor falhado com uma tara por pintar vaginas; e Selby (Jack Farthing), amigo de faculdade de Costello que acaba de sair da prisão, depois de há cerca de um ano ter espancado um tipo em defesa da amiga.

As vidas ordinárias têm um lugar especial na realidade audiovisual britânica e "Rain Dogs" é um dos mais recentes exemplos

Selby harmoniza tudo o que existe à volta de Costello. Oferece um contexto de humor à série, por ser um tipo erróneo, riquíssimo, privilegiado e que, durante os primeiros episódios, surge sempre com a mesma roupa, como um boneco, uma caricatura. Existe também como pai espiritual de Iris, a filha de Costello, protetor e presente das mais inesperadas formas. Apesar de ser privilegiado, tem um apetite por viver no limite, no erro, de procurar o conflito com sede. Sem Selby, “Rain Dogs” seria menos cómica, porque o absurdo da tragédia de Costello teria dificuldades de tornar credível o humor naquela situação. Selby é uma boa caricatura numa vida que se sente como demasiado real: e, por real, entenda-se o biográfico e o exagero do biográfico.

E depois há as outras personagens, sobretudo aquelas que surgem num único episódio ou ocasionalmente aqui e ali. São falhados irremediáveis que tentam tirar partido da situação – vulnerabilidade – da protagonista. O que é curioso, porque Costello é forte, tem ótimas ferramentas para sobreviver. O ato de cair nas armadilhas não é defeito, ou ingenuidade, mas um reforço da precariedade e risco que leva na sua vida. Forçar o ridículo extremo — aliás, a penosa realidade — nessas personagens secundárias e ocasionais dá, por mais estranho que pareça, maior credulidade à protagonista e ao mundo que habita. Não é tola, irracional, mas uma sobrevivente cuja pobreza lhe ensinou a viver cada momento como o último. Um carpe diem de extremos, sem motivos aspiracionais.

A luz ao fundo do túnel está presente quase desde o início: Costello, tal como Cash Carraway, é uma blogger, com um número crescente de fãs, que acredita no momento em que pode vencer. Ao contrário da autora, a protagonista não escreve à distância das memórias, mas histórias de uma vida ainda insuflada pelo risco da sobrevivência e desesperadas pela mudança. Uma grande vida ordinária, com um método muito próximo do cinema britânico que filmou estas vidas no final da década de 1980 e inícios de 1990, quando as coisas ainda estavam más e a ilusão de melhorarem permitia que estas histórias existissem na corda bamba, com personagens que sentiam na pele os limites de uma certa existência.

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