O que fez o prezado leitor durante a pandemia? Pão? Ioga na varanda? Bebedeiras sincronizadas com os amigos via Zoom? Maratonas de “Tiger King”? A quase inexperiente Emma Moran desenvolveu e vendeu o seu trabalho de mestrado em Guionismo a um dos maiores gigantes de streaming do mundo: a Disney+. O resultado estreou-se no início deste ano e chama-se “Extraordinay”. De repente, ter feito uma paisagem estival em ponto-cruz já não me parece tão impressionante.
“Extraordinary” é uma comédia profundamente britânica sobre um mundo de super-heróis diferente dos que vimos até agora. É uma espécie de anti-Marvel. Nele, toda a gente desenvolve um superpoder no momento em que faz 18 anos. Toda a gente menos Jen, que aos 25 continua sem uma aptidão e sem um rumo na vida — sim, lembra vagamente a premissa do filme de animação “Encanto”, como saberá qualquer pessoa com filhos que oiça dez vezes ao dia aquela música sobre a família Madrigal.
O ponto diferencial de “Extraordinary” é mesmo o quão normal e parecida com a nossa é esta realidade. As pessoas desinteressantes continuam desinteressantes, ninguém é particularmente altruísta e ter um superpoder não é sinónimo de ser mais capaz por causa dele — veja-se a mãe da protagonista, que não sabe mexer na televisão ou no smartphone apesar de ter a habilidade de controlar a tecnologia com a mente; ou a melhor amiga, que consegue canalizar os mortos, mas usa esse dom aborrecidamente como estagiária numa firma de advogados, desbloqueando assim questões legais em que uma das partes já morreu. São extra ordinários, extra banais, medíocres em dose abundante — e a viver na Londres do costume, que continua demasiado cara e agreste para um jovem adulto em início de vida autónoma. Citando Morgen, “muitas das histórias de super-heróis focam-se no ser excecional; aqui é uma celebração de ser só OK”.
[o trailer de “Extraordinary”:]
Jen – que está longe de ser uma personagem que recolhe sempre a empatia por parte do espectador — oscila entre a resignação e o estar disposta a tudo para descobrir e ativar o seu poder. Entretanto, vai trabalhando numa loja de disfarces e dividindo casa com Carrie (a tal melhor amiga) e o namorado desta, Kash, que consegue andar para trás no tempo — mas só dez segundos. No primeiro episódio adota também um gato (será mesmo um gato?) que batiza por Jizzlord. O pudor impede-me de traduzir este nome para português, mas se já andou pelo Red Tube talvez saiba o que quer dizer (os senhores das traduções da Disney+ para português tiveram zero pruridos, abençoados sejam). Logo a primeira cena, na qual Jan vai a uma entrevista de trabalho com uma senhora dos Recursos Humanos que tem o poder de fazer as pessoas dizerem-lhe rigorosamente tudo o que estão a pensar, é um cartão de visita certeiro de tudo o que virá a seguir.
Os atores são, como a criadora, nomes promissores, mas com escassos currículos — exceção feita à mãe de Jen, Mary, desempenhada por Siobhán McSweeney, a Sister Michael de “Derry Girls”. Tal como na série passada em Derry, também os atores e intervenientes da Irlanda do Norte são uma constante (é a terra natal da criadora), cimentando a tendência crescente daquela zona do globo como um ninho auspicioso de novas vozes da televisão e cinema. O tom é, aliás, próximo da já citada “Derry Girls”, mas também de “Breeders”, “Motherland” ou “Sex Education” — muito distante de uns “Avengers” ou de qualquer coisa que envolva perseguições num Batmobile.
Os poderes são absolutamente aleatórios, com alguns a serem claramente superiores a outros, formando uma espécie de castas não oficiais nesta realidade. Voar, causar orgasmos só pelo toque, força extrema, transformar “toda e qualquer coisa” num PDF, imprimir pequenos objetos em 3D através, — como dizer? — do rabo. Às vezes são até mais um estorvo que uma bênção. E por isso é que “Extraordinary” acaba por ser tão relacionável, sendo uma daquelas comédias que consegue com sucesso andar por vários ambientes, do fofinho ao bardajão. O resultado final é inteligente e os oito episódios disponíveis veem-se num sopro. Aguarda-se a segunda temporada, já oficialmente a caminho. Mas vem a velocidade normal, sem o poderes de acelerar o tempo ou o espaço.