No Zen-budismo, os koans são perguntas sem resposta que baralham o pensamento convencional. Um dos mais célebres é o enigmático “Qual o som de uma única mão a bater palmas?”. Não se inquietem, a ideia é mesmo não haver une réponse, porque o objetivo do koan é levar o discípulo a ir para lá do pensamento condicionado, explorar estados superiores de consciência e compreensão e — enfin, — atingir a sabedoria ou quelque chose comme ça.

Um dos meus koan prediletos é meditar sobre os motivos que fazem os portugueses adorar as suas pastelarias, mesmo se são quase sempre espaços desinteressantes, ruidosos, cercados de carros parados em segunda fila, com oferta muito parecida e uma atmosfera geral de confusão permanente como se encontra, por exemplo, na “Pastelaria O Careca”, no Restelo, uma das mais conhecidas, familiares e mais bon chic bon genre de Lisbonne.

De portas abertas desde 1954, a antiga Pastelaria Restelo ficou “O Careca” por causa de um antigo empregado calvo de nome Chico (o Chico Careca) que era tão popular que batizou o espaço que hoje é propriedade de outro antigo empregado. Entretanto, “O Careca” abraçou os tempos modernos, o que explicará o new look azulado (um look tão típico de pastelaria portuguesa como os guardanapos) e a conta no Instagram. Seria uma boa história para a edição do próximo ano do Le Routard, embora pudesse fazer crescer as romarias aos célebres croissants e palmiers que foram conquistando fama e clientes graças aos atributos a que ninguém resiste: reputação e localização.

“O Careca” fica na rua Duarte Pacheco Pereira, em Lisboa, e está aberto das oito da manhã às oito da noite, fechando às terças-feiras. No interior, adequa-se ao koan: é confusa, de circulação difícil, decoração banal que inclui posters com os resultados do Placard, expositores coloridos com pastilhas elásticas de vários sabores, tabuleiros meios vazios e sujos com migalhas nas vitrinas e atendimento casuístico, afogado em barulhos de todo o tipo. Não se nota nenhum effort na decoração, mas também nem todos os sítios podem ser como o incrível New York Cafe de Budapeste.

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O exterior é une autre histoire e merece uma visita até para os que detestam croissants e palmiers porque “O Careca” integra um dos expoentes do Movimento Modernista Português e fica num centro comercial ao ar livre composto de várias lojas com arcadas, de meados do século XX, de autoria do arquiteto Chorão Ramalho, onde podemos admirar a primeira obra em azulejos (incríveis) de Querubim Lapa. Àquele museu ao ar livre os locais chamam-lhe apropriadamente a “rua das Lojas” ou “rua do Careca”, que divide longitudinalmente o bairro dos Pares e Ímpares (o Restelo, como veremos, é um assunto complexo). Consta que Isabel II de Inglaterra terá passeado por estas bandas nos anos 50, quando visitou Portugal.

Hoje, os velhos croissants do Careca talvez sejam a atração principal do Restelo, uma zona da cidade que, como avisei, é très complexeTout d’abord porque existem vários Restelos, sempre prontos a contar uma petite histoire sobre rivalidades antigas. Entre outros, contamos o Restelo das Torres (ou do McDonald’s), o do Belenenses, o da Paula Vicente, o da Epul, o das embaixadas e finalmente, cá em baixo, está o Restelo das vivendas, conhecido por zona do Careca, onde quem comprou ou herdou uma das casas teve a mesma sorte dos que adquiriram ações da Apple no princípio desta empresa.

Este Restelo do Careca, que começou por ser um bairro económico de habitação social, é atualmente uma zona calma e rica da cidade, cheio de belles personnes, com netos de cabelo comprido que visitam avós e frequentam (ou frequentaram) os colégios da elite como o Bom Sucesso ou A Torre, jogam ou virão a jogar râguebi (ou, reibi como se diz por lá) no Belenenses e futebol ou ténis no CIF.

Sei isto porque costumava ir beber café com a minha amiga Assunção na Geladaria Chile (que fica uns metros abaixo de “O Careca”) onde ela era permanentemente cumprimentada por gente com crianças atreladas, vestidas de equipamento desportivo ou uniforme escolar. Viviam todos por ali? Talvez não, mas quem vive na parte ocidental de Lisbonne, pretende galgar uns degraus na escala social e não tem meios para comprar uma casa no Restelo, vai ao Careca, a pretexto de ser visto, com a desculpa dos croissants, palmiers, duchesses ou, quando é saison, do bolo-rei. Devo dizer que não existirem mais zonas na cidade como este Restelo do Careca é um mistério tão grande como o próprio Restelo.

Todas as pessoas adoram os croissants-do-Careca, com exceção de uns poucos restelenses que gostam de sublinhar que não vão ao Careca depuis longtemps, com aquele ênfase que faz parecer que estão a falar do tempo das Cruzadas. Percebe-se. Por causa da reputação dos seus croissants, “O Careca” está quase sempre cheio como uma Loja do Cidadão e até tem atendimento por senhas. Pior, os habitué, que se distinguem por ter um ar desocupado e aliviado, como se tivessem acabado de chegar de uma consulta onde não ouviram nada de grave, aproveitam a desordem para passar à frente, lançando pedidos e solicitações aos empregados por cima das nossas cabeças. “O Careca” é o koan das pastelarias portuguesas na sua plenitude.

No dia em que lá voltei pude constatar que tudo está na mesma, o que tomei como um bom augúrio. Depois de dez minutos de espera, consegui dois dos últimos croissants da fornada (é verdade, volta e meia, os croissants esgotam), levei uma caixinha de palmiers e bebi um café. Furando através da multidão, fugi para o exterior à procura de mesa, onde fui recebida por pigeons do tamanho de albatrozes que apinham o pequeno jardim contíguo cheio de trotinetes e bicicletas. No tabuleiro levava dois croissant-do-Careca (attention que é o do açúcar polvilhado por cima da massa, não confundir com o croissant brioche) com fiambre, pouco mais que bolas de massa mal cozida em tiras, com uma fatia rosada de fiambre no meio.

Não era um conjunto nem muito grande nem muito bonito que repousava em cima de um daqueles guardanapos finos e inúteis típicos das pastelarias portuguesas, deposto num prato branco indiferente. Lembrando-me de la madeleine de Proust, procurei as memórias do sabor para conseguir comparar e só depois lhe peguei com cuidado. O croissant começou de imediato a desconjuntar-se, pelo que abri bem a boca e comi quase metade de uma vez, enquanto um pombo de olhos arregalados pousava na mesa de alumínio. Mastiguei devagar, enquanto tentava que a parte que segurava não se desfizesse por cima do café. Continuei a mastigar, cada vez mais devagar, recebendo aqueles sabores da gordura e do açúcar diretos no cérebro e na memória. Depois comi o outro. Oh, mon Dieu, comme c’est délicieux…

No livro Just Eat, o autor Barry Estabrook acerta em cheio na crítica que faz às dietas. Diz ele que as dietas falham sobretudo porque ignoram ou menosprezam o prazer sensual da comida e do ato de comer, bem como a importância daquilo que comemos pode ter para nós. É duvidoso que Estabrook conheça os croissant-do-Careca, mas não me ocorre melhor exemplo daquilo que defende. Depois de voltarmos a comer um feioso, gorduroso e muito açucarado croissant-do-Careca, compreendemos que estes podem muito bem ser a pior coisa do mundo, com exceção de todas as outras, claro.

Até agora, foi a melhor coisa que comi em 2023.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameijoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.