É o primeiro livro de Toni Morrison (1931-2019), cujo original data de 1970. Publicado pela primeira vez em Portugal, traz ao leitor coetâneo o Ohio da década de 1940. No centro, Pecola, criança, pobre, negra, cujo sonho é apenas um: ter olhos azuis, como as crianças brancas que ocupam o lugar do privilégio. Partindo de uma existência que parece confinada, entre um mundo que, tendo o sonho da mudança, parece imutável e repetido, Pecola abrirá espaço na narrativa para a desigualdade em panorama: de raça, de sexo, de critérios de beleza, de idades, de posições hierárquicas no seio familiar. Ao longo do romance, assiste-se à delicadeza como estratégia de criação narrativa. Nisso, a mão de Morrison, que romanceava pela primeira vez, dificilmente tremia.

No desejo de Pecola, o leitor vai vendo mais do que um desejo infantil. Não se trata do sonho, quase impossível, de querer ser astronauta para se pôr os pés na lua; de querer ser princesa para usar vestidos longos; de querer ser o Ronaldo para ser o melhor do mundo. Em vez disso, há o desejo de uma banalidade – mas é a banalidade de quem pertence, aqui, ao lugar do outro, que na verdade nem outro chega a ser. Em vez disso, o outro é, afinal, o centro a partir do qual se define a relação de alteridade. E, estando Pecola no centro da narrativa (ainda que a história seja contada do ponto de vista de Claudia MacTeer, filha dos pais adoptivos de Pécola, para além de um narrador omnisciente na terceira pessoa, que completa as zonas mortas), é ela quem vive em relação de alteridade no mundo, razão pela qual vive em zona agredida pelos estereótipos de beleza impossível de atingir. O critério de beleza foi imposto por quem detém o lugar de privilégio, assim como o critério de qualquer aceitação. O seu desejo de ter olhos azuis parte, assim, de uma ideia, ainda que escondida, ainda que não confessada, mas sempre interiorizada, de auto-aversão racial.

Morrison afirma que o livro nasceu de uma conversa com uma amiga de infância. Acabadas de entrar para a escola primária, a outra admitia o desejo de ter olhos azuis. Da parte de Morrison, chegou a haver uma “repulsa violenta” (p. 10) pela imagem criada. Quem falava, afirma a autora, parecia pedir compaixão, mas dali só levava o espanto devido à profanação. Em causa estava já a incapacidade de reconhecimento da beleza que não correspondesse ao modelo branco. E, desde a cabeça do romance, esta estranheza também invade o leitor, este desconforto também cria uma sensação de doença: como é que um olhar externo criaria, até para uma criança, a sensação de inferioridade? Enraizada ali estava a injúria do que não pertencesse ao grupo a partir do qual se definia o mundo.


Título: “O olhar mais azul”
Autora: Toni Morrison
Editora: Editorial Presença

Tradução: Tânia Ganho

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E, além dos eixos sociais, a negligência do que é próximo vai marcando o passo logo desde as primeiras páginas:

Os adultos não falam connosco: dão-nos instruções. Lançam ordens sem fornecerem informação. Quando tropeçamos e caímos, olham para nós de relance; se nos cortamos ou magoamos, perguntam-nos se somos malucas. Quando nos constipamos, abanam a cabeça, repugnados com a nossa falta de consideração. Como, perguntam eles, é que esperam que alguém faça alguma coisa na vida se vocês duas estão doentes?” (p. 22)

(…)

Mais tarde, vomito e a minha mãe diz: “Porque é que vomitaste para cima da roupa da cama? Não tens cabeça suficiente para vomitar fora da cama? Olha só o que fizeste. Achas que não tenho mais nada para fazer senão limpar o teu vomitado?” (p. 23)

Toni Morrison trabalhou os fios da acção de forma delicada, metendo no cerne da narrativa o olhar de desprezo, mas sem o confessar, sem dar as cartas todas. Sobre isso vai havendo discurso directo, no que permite o olhar caleidoscópico intra-narrativa. Os diálogos são vivos e em tudo a autora utilizou uma forma de linguagem que reproduzisse a acção concreta que levou à escrita do romance. E, para o levar a cabo, um trabalho de linguagem que permitiu diálogos e descrições, tudo escorreito. Há uma grande dificuldade em fazer-se diálogos plausíveis, mais ainda se na boca de crianças, e nisto Toni Morrison soube criar plausibilidade e facilidade de leitura. Nem por um momento o leitor, ao ler as crianças em conversa umas com as outras, deixa de as ouvir.

Pecola é a rapariga mais negra de toda a escola. Todos os dias reza para ter olhos azuis, e esta pequena tragédia não lhe parece coisa pouca, mesmo que haja outra tragédia que lhe enformou a vida: violada pelo pai até ao desmaio, vive dentro de um corpo que sofre humilhações múltiplas. Para além dessa, a tal social que lhe dá cabo da cabeça. Para o leitor, a cena em que Toni Morrison descreve a violação terá de ser impactante. Não por ser imprevista, não por se contar com isto. Já se sabe desde tenra parte do romance que Pecola teria sido violada pelo pai. O impacto está na forma como a autora fez a descrição sem gorduras nem solavancos, numa prosa depurada, directa ao osso, directa à coisa, de forma a que não sobrasse nada ao leitor que não a imagem do que lia. Partindo daí para a vida, a rejeição para a ser não apenas marca evidente, mas também, e principalmente, marca constituinte da personagem de Pecola. O que parece coisa pouca é, afinal, o desfecho de uma tragédia emocional, o culminar de humilhações, o fim do amor-próprio, o resultado da violência reiterada. Querer os olhos de outra cor éalgo mais: é querer a vida de uma criança amada.

No livro, a emoção está depurada por uma escrita que não perde tempo à volta do sentido que tem para veicular. A violência patente garante a atenção do leitor. As personagens são fortes, as vozes são vivas. Toni Morrison estreou-se no romance dizendo logo ao que vinha.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.