O estereótipo diz que o western foi quase sempre o género de cinema de um certo tipo de homens para esse mesmo tipo de homens. Barbas sujas, mulheres indefesas, valentes tareias e duelos de cortar a respiração. De Itália aos Estados Unidos da América, entre o spaghetti e o não spaghetti, eventualmente com a música de Ennio Morricone a tocar. A tendência de há uns anos para cá é a de subverter, estando realizadoras como Chloé Zhao (“The Rider”) ou Jane Campion (“O Poder do Cão”) a concorrer contra uma história que afinal ainda não tem fim. No filme com que esta última, a cineasta neozelandesa, arrecadou o Óscar em 2022 para Melhor Realização, vimos um Beneditch Cumberbatch a empurrar a sua homossexualidade para o fundo do poço. Foi nessa linha de suprimir desejos que Campion acabou por fazer um retrato de época sobre masculinidade tóxica.
Pedro Almodóvar, aclamado cineasta espanhol (“Dor e Glória”, “Mães Paralelas”, “Tudo Sobre Minha Mãe”, podíamos continuar durante várias linhas) que sempre primou por uma marca original, de personagens trágicas mas próximas, com filmes que conseguiram ir além Península Ibérica, também algo a dizer sobre os westerns.
[trailer do filme “Estranha Forma de Vida”:]
Em 2005, o livro Brokeback Mountain de Annie Prouxl foi adaptado para o cinema. O nome que pairava no ar era o de Pedro Almodóvar. Só que o realizador andava demasiado ocupado, recusou, afirmando ter medo de perder liberdade criativa. Escapou-se a Hollywood, catapultou Penelope Cruz e Antonio Banderas, colheu frutos nos maiores festivais do mundo como Cannes. Quem realizou essa mesma adaptação foi Ang Lee. Anos mais tarde, eis que “Estranha Forma de Vida”, o seu “clássico” do género, com inspiração inicial no famoso fado de Amália Rodrigues, surge como resposta a essa recusa.
Desta vez, em plena Hollywood: foi buscar Ethan Hawke (Jake) e o mais que badalado Pedro Pascal (Silva) para os papéis principais, inscreveu também o ator português José Condessa, que subiu esta quinta-feira à passadeira vermelha de Cannes, para a viagem até Bitter Creek. Trinta minutos à europeu, à Almodóvar, à procura do que é, afinal, o desejo masculino. O desejo de todos. “Este é um filme independente de outros westerns”, inaugurou o espanhol perante uma plateia cheia na sala Debussy. “The Rider”, “First Cow” ou “O Poder do Cão” têm o olhar feminino para retirar uma suposta carapaça dura. Almodóvar quis tirar o anacrónico, dar cor, mostrar cenas de sexo passadas com as palavras entre dois homens. Olhar mais para os filmes noir do que para os filmes dos anos 70, “com muito menos desejo do que os primeiros”, garante. “Já alguma vez se viu num western dois homens a fazer a cama? Não. Nunca se fala do desejo dos homens”, garantiu.
As duas personagens não se viam há 25 anos e reencontram-se neste rancho que olhará para o dia-a-dia de Silva, o estranho mexicano que chega aos EUA e Jake, o xerife frio e distante. Há segundas intenções sempre à espreita em todo o lado. Na saída do banho, no quarto, na sala, num autêntico teatro. Não há cenas de sexo explícitas, para contrariar um certo modus operandi de que Almodóvar se fartou. A narrativa sexual está no texto de cada um. A de dois machos que jogam na sombra do passado, entre a recusa e a vontade de libertar o desejo que sentem um pelo o outro em “noites orgásticas” (foi assim mesmo o termo cunhado pelo realizador esta quarta-feira). “É tudo muito teatral, nunca mostro as duas personagens nuas. As palavras são mais intensas. As cenas nesta curta-metragem estão cheias de sensualidade”, defende o realizador.
Pedro Pascal acabou por não estar presente em Cannes, mas Ethan Hawke sim. Pedro Almodóvar defendeu com garras e dentes a escolha do ator, por “ser americano, mas não representar como tal”. “Ele tem todas as características para interpretar um xerife. É secreto, distante, frio. É exatamente o oposto da sua personagem na trilogia de Richard Linklater [“Antes do Amanhecer”, “Antes do Anoitecer”, “Antes da Meia Noie”.
O ator agradeceu o elogio e revelou o que fez assim que o guião lhe chegou à caixa de email. Resolveu dar um passeio e pensar: “Devo ter feito algo certo na minha vida para receber este convite”. “Almodóvar é sempre humano, sempre novo, preocupa-se com cada detalhe. Não me preocupei com nada na rodagem sem ser com o meu trabalho.” Inspirou-se em Kirk Douglas, claro, para um xerife que se nega a existir como seria suposto. Como se quisesse empurrar as raízes para baixo e deixar-se ser outra pessoa e outro ator. Ainda assim, move-se bem por estes territórios europeus e denota-se o gosto em trabalhar noutro jeito que não um certo “clássico americano” em “Estranha Forma de Vida”.
No fim, com a plateia com vontade de fazer mais perguntas do que a que anfitriã que moderou a sessão com o realizador e o ator, Almodóvar entrou em roda viva para contar como poderia haver uma sequela — ou uma longa-metragem desta sua curta. Um mata o outro, fogem para o México, o diabo a sete. Ou morrem os dois. Logo ele que não vê com bons olhos as séries, mas que com esta história ainda tem muito para desbravar. Fica o desejo. E fica a faltar saber o que pensa Pedro Pascal. Já Ethan Hawke só tem de se sentir bem. “Se um homem sensual como o Pascal me deseja, ainda melhor”, finalizou.