Primeiro, a música. “Tan, tarantan, tan, taran, tan, tarantan, tan, taran, tan, tan”. A sala de conferência de imprensa do festival de Cannes estava à pinha de jornalistas. “Espero que alguém pergunte porque é que o filme é tão mau”, ouviu-se. O speaker de serviço, para não deixar o ambiente azedar, lá se pôs a cantarolar o jingle da saga “Indiana Jones”, na altura em que foi revelado o quinto e possivelmente último episódio de uma das séries mais populares da história do cinema. “O Marcador do Destino” é o título do filme que escolheu Cannes para fazer a sua estreia, fora de competição, depois de “Top Gun — Maverick” no ano passado.
A expectativa era muita: além de Madds Mikkelsen e Phoebe Waller-Bridge, que fazem parte do elenco, toda a gente queria ver Harrison Ford. Oitenta anos, emocionado na sessão no Lumiére e num estado de espírito difícil de traduzir logo na primeira pergunta. Como é que uma estrela como esta fica sem palavras? Já se sabe que Ford é mestre em entrevistas (à sua maneira), mas conferências de imprensa em Cannes são sempre outro desafio. Brincou, emocionou-se, falou da reforma, do passado, do quão se sente amado e da vontade que mantém em continuar.
[o trailer de “Indiana Jones e o Marcador do Destino”:]
As críticas ao novo episódio desta saga que começou com Ford e Steven Spielberg nos idos dos anos 80 (o primeiro, “Salteadores da Arca Perdida”, faz 42 anos) não estão a ser nada simpáticas. Um arqueólogo andar a correr contra o tempo e contra nazis parece já não ser muito entusiasmante. Indiana Jones e Helena Shaw, filha de Basil, amigo de longa data, chegam primeiro ao Marcador do Destino, artefacto criado por Arquiémedes que é capaz de controlar o espaço e o tempo. Não faltam túmulos e insectos gigantes e perseguições de tuk-tuk. Mas não revelamos se veremos um Indiana Jones mais novo a fugir de uma bola de pedra gigante.
Depois há o uso da tecnologia que agora parece ter vindo para ficar — e não é só em blockbusters, convém não esquecer o que fez Martin Scorcese no “The Irishman” com Joe Pesci , Al Pascino e Roberto de Niro. Muito uso de computadores para rejuvenescer os atores (Ford e Madds Mikkelsen, que surge, mais uma vez, como vilão), história repetitiva e quadrada, entre outros mimos que têm sido disparados. Mas os jornalistas presentes vinham com outra disposição. “Harrison, continua muito sensual. Aquela cena a tirar a camisola, ‘you still got it’. Já agora, consegue andar a cavalo?”. Pergunta diretamente da Austrália, que fez rebentar a sala de risos e corar o norte-americano que, sem enganos, mostra estar em pico de forma. “Obrigado por notar”, disse com olhar malandro e ar convencido, daquele que não magoa e de quem ainda parte uns quantos corações. “E sim, consigo andar a cavalo, se me deixarem.” Dúvidas desfeitas.
Fora o flirt, Ford não veio para brincadeiras. Estava como sempre esteve: sério, mas sem seriedade, divertido, mas sem perder o norte. E, a certa altura, tudo era mais parecido com uma entrevista de vida do que com uma conferência de imprensa. O olhar, meio ensaiado, meio ingénuo, do actor assim que percebeu que maior parte das perguntas seriam para ele, dá a sensação de que Ford sabe que o seu tempo está acabar, mas que ainda tem muito para dizer. É que para o também Han Solo da saga Star Wars, sentir-se tão bem recebido em Cannes foi “inimaginável” — e logo num fim de ciclo, onde o que mais queria era “sentir o peso da vida” do seu Indiana Jones.
Pode estar na reta final da vida, mas não da carreira — até porque vem aí outra temporada de “Shrinking” (Apple TV+), série na qual o ator pode explorar o género cómico, que adora. Mantendo a conversa no tom humorístico, quando lhe perguntaram o porquê de regressar ao papel que o catapultou para o patamar das estrelas de Hollywood, apontou para ele próprio e disparou: “Não é evidente porque é que o quis fazer agora? Tenho que me sentar e descansar um bocadinho. É verdade que os atores podem ser muito infelizes quando não trabalham. Mas eu fui muito amado, não tenho arrependimentos. E parece que vou continuar a ter oportunidades, vá-se lá saber porquê”, comentou o ator que recebeu, tal como Michael Douglas, a Palma de Ouro honorária.
Um eventual elixir da eterna juventude não foi revelado, mas mostraram-se algumas pistas pelo caminho. “Estou muito feliz adorei ser joven, mas merda, posso morrer e… posso continuar a trabalhar”, desabafa Ford. Ou a andar de bicicleta. Madds Mikkelsen revelou que logo no primeiro dia de rodagem do quinto filme de “Indiana Jones”, a equipa acabou o trabalho às cinco da manhã. Exaustos, só queriam ir para casa (ou o que de mais próximo existia ali à mão). Menos Ford. “Estávamos exaustos, só queríamos ir para a cama. O Harrison pegou numa bicicleta e fez imensos quilómetros.” Estão explicados os seus frescos 80 anos.
Entre produtores e novos protagonistas da saga, como Phoebe Waller Bridge (autora e atriz inglesa, que, por exemplo, escreveu e protagonizou “Fleabag”) ou o ator norte-americano Boyd Holbrook (“Logan”), notou-se um misto de alegria, nervosismo e entusiasmo em fazer parte de um dos filmes referência da indústria norte-americana, que agora segue a reboque dos remakes para tentar salvar as salas de cinema. “Só agora é que estou a perceber quão grande é este franchise. Foi uma aventura dentro de outra aventura”, comentou a atriz britânica, que aproveitou para exercitar os músculos neste projecto planetário. “As cenas de acção são muito libertadoras. É um grande exercício para os actores”, disse.
Mas o show era de Ford e todas as perguntas procuravam-no a ele ao ponto de os outros presentes quase só serem questionados pela greve de guionistas que assola a indústria norte-americana. A cara de surpreendido mostrava humildade ou uma postura de comunicação muito bem pensada. O saber falar cruzado com o talento, o currículo e a capacidade de contar histórias. E ter um realizador à altura. Spielberg estava fora da equação pela primeira vez, veio James Mangold (“Copland”, “Walk the Line”, “3:10 to Yuma”, “Le Mans ’66: O Duelo”). “O Harrison, acima de tudo, além do estatuto que tem, de ser uma lenda, é um ator. Confesso que hesitei em aceitar este projeto, mas as condições reunidas foram lendárias, dos atores à produção. E assim foi possível também fazer um filme meu”, disse o realizador.
Este regresso feliz ao professor universitário explorador de chapéu icónico e chicote pode não passar no crivo da crítica, mas, afinal, para Ford e a trupe de “Indiana Jones”, é sempre bom regressar onde se foi feliz. “Não podia estar melhor servido, de atores e de guião. Quando não há magia nem num set, é um pesadelo. No caso deste filme, nunca tinha visto atores a darem tanto uns aos outros”. Veremos o que dizem as bilheteiras.