O título do álbum não podia ser mais apropriado: The Age of Pleasure é, como habitualmente com Monáe, uma exploração de todos os sons direta ou indiretamente ligados ao r’n’b em que se reclama para a mulher o direito a fazer o que bem entender, a ser dona do seu corpo, do seu destino, do seu bem-estar – em que a mulher é colocada não na posição de obedecer (a um marido, a um padrão de beleza) mas de agir (como bem entende). Daqui até às fotos que fizeram capa na revista Rolling , a ligação foi direta e natural.
Isto foi em maio; fiel às suas palavras, a 1 de julho Monáe resolveu mostrar um pouco mais quando estava em palco no Essence Festival, em Nova Orleães, uma terra que, tal como a própria Monáe, não é propriamente conhecida por ser puritana. As atitudes de Janelle costumam ser esmiuçadas pelos media, discutidas em longas threads no Twitter, analisadas sob o espectro da libertação feminina (pelas mulheres) ou da falta de pudor (por homens a quem ainda não foi anunciado que estamos em 2023).
É possível que Monáe saiba que as suas fotos, as suas palavras, os seus atos, vão ser discutidos, é possível que até acredite que isso é publicidade gratuita – mas em 2023 devia ser mais ou menos indiferente se A ou B preferem estar em tronco nu ou de pólo Lacoste ou com um corta-vento da Dunhil. E no meio de todas estas conversas acerca de mais ou menos mamilos à vista, há uma que não estamos a ter: a do valor musical da senhora Monáe – e esse é maior do que por vezes os media parecem atribuir-lhe.
Tenho argumentos para defender a tese acima enunciada: “Champagne shit”, o segundo tema de Age of Pleasure, é um espanto de canção dançável, meio reggae meio r’n’b, repleta de metais ricos, groove danado; “Phenomenal”, a canção seguinte, vem daquele universo muito próprio de Monáe, em que com pouquíssimos elementos (um ritmo meio bossa, palmas, uma ocasional guitarra, pouco mais), ela parece estar a criar as canções do futuro, que não obedecem a nenhuma fórmula tradicional.
É muito fácil continuar a argumentar. Basta descrever cada uma das canções de Age of Pleasure em vez de gastar tempo a falar do tema “maminhas da Monáe” (porque é isto que os media fazem: dizem que se perde demasiado tempo a falar de maminhas em vez de música, enquanto continuam a falar de maminhas porque falar de maminhas rende mais clicks que discutir um ritmo).
[ouça o álbum “The Age of Pleasure”, na íntegra através do Spotify:]
Mas em certo sentido ela sempre fez isto: em 2010, quando se estreou com The ArchAndroid, o que se destacava no álbum já era essa inusitada fusão de funk, soul e pop; como se ela tivesse crescido numa dieta de Prince, Fela Kuti e os girl groups dos anos 60 da Motown e procurasse a ligação invisível entre todas estas músicas e a sua tradução para o século XXI.
Essa ambição notava-se em faixas como “Tightrope”, com Big Boi, metade dos Outkast, e não é por acaso que o mencionamos – foi ele quem descobriu Janelle, quem lhe abriu as portas da indústria. Mas o percurso dela até esse momento não foi propriamente linear: nascida em Kansas City em 1985, Janelle cresceu numa família working-class, sem grandes privilégios exceto o dos seus ouvidos e da sua garganta; apaixonou-se por música e ganhou uma bolsa para a American Musical and Dramatic Academy in New York City, onde estudou teatro.
Como tantos outros aspirantes a artistas, nessa altura Janelle começou a atuar em clubes noturnos, até que, em 2005, chamou a atenção de Big Boi, do duo OutKast, que entretanto havia escutado The Audition, uma espécie de demo que Monáe criara em 2003 para mostrar as suas capacidades como compositora e vocalista; Big Boi também a trouxe para Idlewild, dos OutKast dando-lhe a exposição necessária para a indústria se interessasse por ela e lhe oferecesse um contrato – do qual resultou The ArchAndroid.
O disco não foi apenas um êxito junto da crítica – foi um mini-êxito comercial e chamou a atenção dos seus pares; de repente ela tinha, à distância de um telefonema, gente como Miguel ou Pharrell Williams, dispostos a colaborar com ela. Mas o momento em que Monáe se torna conhecida do grande público surge em 2013, quando ela lançou Eletric Lady, o seu segundo disco, do qual constava “Q.U.E.E.N.” (com a presença da rainha Erykah Badu) e que se tornou uma espécie de bandeira da música que Monáe cria, um hino do empoderamento feminino, quando ainda não tinha havido movimento #MeToo e a expressão empoderamento feminino ainda não era usada pelas adolescentes de Águeda.
Da lista de colaboradores de Dirty Computer (o terceiro disco de Monáe, de 2018), não consta oficialmente Prince, mas, segundo a própria, ele ofereceu-lhe vários sons, que estiveram na origem da espantosa “Make me feel”, que de facto soa a Prince por todos os lados e tem aquele tom e conteúdo lírico de libertação sexual típico do génio de Minneapolis. Outras grandes canções de Dirty Computer: “Pynk”, outra celebração da feminilidade, desta feita com um vídeo que se tornou viral; e “Django Jane”, que volta ao tema (tão caro a Monáe) do empoderamento feminino.
Desconheço se existe algum tratamento estatístico das expressões e adjetivos usados para descrever os discos de Monáe, mas palavras como “audaciosa”, “ambiciosa/o” (conforme se esteja a falar dela ou do disco”) e “fusão” surgem em quase todas as peças sobre ela – é como se ela estivesse sempre a fazer o mesmo disco, que mistura r’n’b com géneros próximos, enquanto procura tornar esse mesmo r’n’b futurista e o usa para falar da libertação feminina; mas, ironicamente, esse mesmo disco soa sempre radicalmente diferente, porque ela está sempre à procura de novos sons, novos limites.
[o vídeo de “Lipstick Lover”, o primeiro single “The Age of Pleasure”:]
O que nos traz de novo à música e, neste caso, a “Water slide”, a 10ª faixa de Age of Pleasure: uma simples batida meio reggae (que está muito presente no álbum), relaxadona, e de repente um refrão suave e delicioso, como a primeira lambidela num gelado, o primeiro mergulho do ano no mar. Tudo tão simples, tudo tão fácil, tudo nada óbvio, tudo no sítio.
Mas podia, porque Age of Pleasure está recheado de genitália, hormonas em excesso, exploração do corpo do outro pela simples diversão – um bom exemplo disso é “The Rush”, em que no meio de várias descrições se ouve de repente Amaarae dizer “Fucking you like it’s my destiny”. Não há meias palavras, não há paninhos quentes: “The Rush” é sobre pinar porque se tem vontade de pinar.
Janelle Monáe tem uma obsessão musical (fundir o r’n’b com todos os géneros musicais que a humanidade alguma vez produziu) e põe a sua obsessão musical ao serviço da sua obsessão pessoal e social (cada mulher fazer o que lhe apetecer, e ser livre, seja essa liberdade a de usar o corpo com quem e quando quiser ou a de ir passear sem ter de dar qualquer justificação sobre onde vai e com quem).
Nada disto é negociável: os temas repetem-se e o milagre é que ela consiga que cada nova canção soe sempre a uma nova canção; nada disto soa panfletário ou repetido ou repetitivo, talvez porque a libertação de Monáe tenha sido gradual, porque ela vá sempre descobrindo uma nova forma para o bolo (desta feita é a tonalidade reggae) ou porque encontre sempre uma forma de nos surpreender: no refrão da 13.ª e ótima canção de Age of Pleasure, “Only Have Eyes 42”, ela canta o nome da canção e se repararem aquele 42 quer dizer “para dois” ou “para duas pessoas”.
É uma forma de dizer que sim, sim, está muito apaixonada e só consegue olhar para duas pessoas e isso é OK. Sejam estas duas pessoas quem forem, os meus muitos parabéns e que sejam todos muito felizes – pelo menos tão felizes quanto nós somos a ouvir cada disco da senhora Monáe.