As pessoas em situação de sem-abrigo atualmente a pernoitar em tendas na Avenida Almirante Reis, em Lisboa, começaram esta semana a ser avisadas de que até ao próximo dia 12 de julho vão ter de abandonar o local, para que as equipas de higiene urbana da Câmara Municipal de Lisboa possam proceder à limpeza dos espaços.

A denúncia foi feita pelo PAN, que esta quarta-feira enviou um pedido de esclarecimento à Assembleia Municipal de Lisboa, a expor a situação e a questionar a autarquia sobre se a ordem “terá relação” com o “aproximar da jornada Mundial de Juventude”. O Bloco de Esquerda também confrontou a autarquia com a ação da próxima semana, refere o jornal Público.

“Ficámos surpreendidos quando hoje de manhã [esta quarta-feira], as pessoas que atualmente vivem em tendas à porta da nossa sede, em situação de desespero, nos informaram de que têm de sair dali e não sabem para onde vão”, pode ler-se no requerimento, a que o Observador teve acesso. “Confidenciaram-nos que técnicos(as) da Comunidade Vida e Paz estiveram no local e os informaram de que têm de recolher as tendas e abandonar a zona até dia 12 de Julho. Foi-nos também dito pelas mesmas pessoas que este pedido de desocupação da via pública não é apenas para quem pernoita na rua na Avenida Almirante Reis, como na também na Gare do Oriente e outros locais da cidade.”

Em comunicado, emitido também esta quarta-feira, a Comunidade Vida e Paz, tutelada pelo Patriarcado de Lisboa, explicou que, “a exemplo de solicitações anteriores”, foi contactada pela autarquia “para informar e sensibilizar as pessoas em situação de sem-abrigo de que irá ocorrer uma ação concentrada na Avenida Almirante Reis e na Rua Regueirão dos Anjos que visa uma limpeza das tendas existentes e demais pertences”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Câmara desmente associação de apoio a sem-abrigo

Em resposta enviadas esta quinta-feira ao Observador, a Câmara Municipal de Lisboa desmente esta versão dos acontecimentos e rejeita que tenha formulado qualquer pedido no sentido de retirar a população sem-abrigo daquela zona da cidade.

“No âmbito destas intervenções, a CML rejeita, portanto, a falsa ideia que foi veiculada pela Comunidade Vida e Paz e já o transmitiu a esta entidade“, pode ler-se no texto enviado através do gabinete da vereadora para os Direitos Humanos e Sociais, em que a autarquia enumera as ações de apoio que desenvolve “regularmente” e com “o máximo respeito pela dignidade da vida humana” junto destas populações.

Apesar de não fazer qualquer referência à questão levantada pelo PAN sobre o timing em que esta limpeza vai ser feita, a pouco mais de 15 dias da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, a CML queixa-se de ser “sistematicamente” perseguida por ataques e acusações  das “forças da oposição, seja porque atua, seja porque não atua”.

No comunicado emitido esta quarta-feira, a Comunidade Vida e Paz também não fez qualquer referência à hipotética relação com a Jornada Mundial da Juventude, mas ao Observador, o diácono Horácio Félix, presidente da direção, garante que uma coisa não tem nada a ver com a outra e que não há nenhuma operação de limpeza da cidade em curso por causa da JMJ. “Não, tem a ver com o bem das pessoas que estão na rua, aliás, foi-lhes dada alternativa, quem quiser pode pernoitar no acolhimento de emergência, no Quartel de Santa Bárbara”, explica.

O presidente da Vida e Paz, uma das cinco associações de solidariedade social que prestam apoio aos sem-abrigo na capital, através de um protocolo celebrado com a Câmara Municipal, assegura ainda que, “periodicamente”, a Câmara Municipal de Lisboa promove estas ações de limpeza.

“Habitualmente e periodicamente, e tendo em vista a proteção das pessoas que estão na rua, o espaço onde elas vivem deve ser limpo, tirado o lixo e lavado o espaço, para que tenham melhores condições de salubridade e de saúde”, diz. “Pode não parecer à primeira vista, mas a finalidade é o bem das pessoas que estão na rua.

Questionado sobre com que regularidade são limpos este  locais, na via pública, onde costumam pernoitar pessoas em situação de sem-abrigo, o diácono Horácio Félix responde que não existe propriamente uma periodicidade fixa: “Depende dos sítios, se estão com mais gente, mais sujos, com menos salubridade”. À pergunta sobre quando foi a zona em questão limpa pela última vez, o presidente da Comunidade Vida e Paz remete mais esclarecimentos para a Câmara Municipal de Lisboa.

Número de pessoas em condição de sem-abrigo a dormir nas ruas de Lisboa no final de 2022 cresceu para 394

Ações de limpeza são comuns? Associações com argumentos contraditórios

Clarissa Ferreira, coordenadora da equipa técnica de rua da Associação Vida Autónoma, responsável por assegurar apoio à população sem-abrigo da zona oriental da cidade, garante ao Observador que não recebeu qualquer indicação do género por parte da CML — nem ao longo das últimas semanas nem em nenhum outro momento desde 2019. “Não recebemos nenhuma recomendação nesse sentido por parte da Câmara e as outras equipas também não receberam”, diz, assegurando que, pelo menos nas zonas em que presta assistência, nunca foram retiradas pessoas ou tendas para se fazerem limpezas da via pública.

Américo Nave, diretor executivo da Crescer, que a par da Médicos do Mundo e da VITAE completa o grupo de cinco associações a atuar no terreno em parceria com a autarquia lisboeta, explica, pelo contrário, que não é estranho que aconteçam ações de limpeza da via pública e que, sempre que a CML planeia este tipo de intervenção em zonas onde pernoitam sem-abrigo, as associações da área são avisadas, para que possam passar a palavra.

“Sensibilizamos a Câmara nesse sentido, para que possamos avisar as pessoas com antecedência e para que elas possam guardar os seus pertences”, diz, explicando que, na maior parte das vezes, essas ações de limpeza, que não têm regularidade fixa mas acontecem com frequência, um pouco por toda a cidade, decorrem de reclamações dos próprios munícipes. “As pessoas queixam-se da insalubridade que existe em determinada zona e a Câmara manda equipas de limpeza. Normalmente, quando isso acontece, as associações pressionam a Câmara para arranjar respostas para as pessoas, mas se elas não quiserem ir para lado nenhum, podem regressar depois.”

Questionado sobre quando vai acontecer ao certo a limpeza de tendas e pertences na Almirante Reis e no Regueirão dos Anjos, o diácono Horácio Félix voltou a remeter esclarecimentos para a Câmara Municipal de Lisboa — que garante não ter feito qualquer pedido para que as pessoas abandonem o local. À pergunta sobre se, depois de limpos os espaços, nomeadamente o átrio do edifício onde está sediado o PAN, as pessoas que lá pernoitam poderão regressar, o presidente da direção da Comunidade Vida e Paz começa por recordar que “a intenção primeira é sempre criar condições para as pessoas saírem da rua”, para depois garantir que sim. “Não foi dito às pessoas que não podiam voltar, seguramente. Que eu saiba não se pode proibir as pessoas de estarem na rua.”